A proposta do exercício é comparar os princípios e as garantias constitucionais com os textos das “Cantigas de Roda”. Não se trata, evidentemente, de condenar as “Cantigas de Roda” ou, muito menos, de declarar a “inconstitucionalidade”, mas simplesmente oferecer uma dinâmica para compreensão dos princípios e garantias previstos na Constituição.
Também não é intenção discutir como o texto dessas “cantigas” repercute no aprendizado e na formação das crianças. Com efeito, penso que esta não é tarefa para os juristas. Algumas situações expostas pelas “cantigas” talvez possam ser explicadas pela psicologia analítica, principalmente pela teoria dos “arquétipos”, desenvolvida por Jung. Mas, como disse antes, esta não é tarefa para juristas.
Voltando ao assunto, depois das leituras propostas, pode-se se chegar à conclusão que as “cantigas”, com exceção de “Terezinha de Jesus”, estão completamente desvinculadas do projeto constitucional de construção de uma sociedade justa livre e solidária, fundada na cidadania e dignidade da pessoa humana. (arts. 1º e 3º, CF). Além disso, em outros casos, é clara a desvinculação das “cantigas” com legislações mais específicas, a exemplo da proteção à criança, mulheres e meio ambiente.
Vamos lá.
I – Atirei o pau no gato-to-to mas o gato-to-to não morreu-reu-reu. Dona Chica-ca-ca admirou-se-se do berro, do berro que o que o gato deu: miauuuuuu.
A tentativa, ao que parece, era mesmo de matar o gato com uma paulada, mas o gato não morreu para admiração da Dona Chica, que é omissa e apenas assiste à cena macabra. Assim, além de banalizar a vida do gato e demonstrar um comportamento cruel, o texto da “cantiga” não está de acordo como o artigo 225 e seus incisos da CF, que defende o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
II – Eu sou pobre, pobre, pobre, de marré, marré, marré. Eu sou pobre, pobre, pobre, de marré de si. Eu sou rica, rica, rica, de marré, marré, marré. Eu sou rica, rica, rica, de marré de si.
Evidente que uma nação é composta de ricos e pobres, mas a “cantiga” demonstra a soberba e disriminação de uma “menina rica” e, de outro lado, a aceitação de sua condição de pobre por outra menina, como se fosse isso um fato natural. No entanto, consta dos objetivos da República: (i) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e (ii) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (Art. 3º, III e IV, CF).
III – Vem cá, Bitu! vem cá, Bitu! Vem cá, meu bem, vem cá! Não vou lá! Não vou lá, Não vou lá! Tenho medo de apanhar.
Bom, se “Bitu” é um cãozinho, por exemplo, mais uma vez é o caso de maus tratos a um animal. De outro lado, ao recusar o convite, a impressão que se tem é que “Bitu” não vai porque já sabe que vai apanhar. Tortura continuada? Aqui resta demonstrada também a banalização de sua integridade física por parte de quem lhe chama. Se “Bitu” é um ser um humano – uma criança ou uma mulher, por exemplo – a “cantiga”, além de violar as garantias individuais, a integridade física e moral, também violaria o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Maria da Penha.
IV – Marcha soldado, cabeça de papel! Quem não marchar direito, vai preso pro quartel.
Primeiro, a voz do comando humilha o soldado ao chamá-lo de “cabeça de papel”. (Bullying?) Em seguida, viola os princípios da legalidade e do devido processo legal ao determinar a prisão do soldado pelo simples fato de “não marchar direito”, ou seja, se não é crime “marchar errado” não pode também ser preso autoritariamente quem assim age. Além disso, mesmo que fosse crime, a Constituição garante a todos os acusados o direito à ampla defesa, contraditório e devido processo legal. (Art. 5º, LV, CF).
V – A canoa virou, por deixar ela virar, foi por causa da fulana que não soube remar.
Novamente, a voz do comando acusa a “fulana” de não saber remar e causar o naufrágio da canoa. Assim, a “cantiga” responsabiliza sem direito à defesa e ao devido processo legal.
VI – Samba-lelê tá doente, tá com a cabeça quebrada. Samba-lelê precisava é de umas boas palmadas.
Primeiro, Samba-lelê já está com a “cabeça quebrada” e isto demonstra que também já foi vítima de uma violência. Além disso, a “cantiga” defende que Samba-lelê precisa ainda de umas boas palmadas. Mas o que fez de tão grave Samba-lelê? Isto não seria tortura? Ora, neste caso está evidenciado que Samba-lelê, aqui entendido como sendo uma criança, foi vítima de maus tratos e continua sofrendo ameaças. Assim, além de ferir a Constituição, a “cantiga” viola também o Estatuto da Criança e do Adolescente.
VII – Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esta criança que tem medo de careta
Este boi pega crianças simplesmente por ser um boi ou porque é um “boi da cara preta”? A criança tem medo de boi ou de “careta”? Então, a cara do boi da cara preta é uma “careta”? Se for isso, a “cantiga” demonstra um sentido de discriminação pela cor da “cara” do boi e, pior ainda, ameaça uma pobre criança e transforma um animal em algo assustador. A “cantiga” induz à discriminação e viola também princípios do Estatuto da Criança e do Adolescente.
VIII – O cravo brigou com a rosa debaixo de uma sacada; o cravo saiu ferido e a rosa despedaçada. O cravo ficou doente, a rosa foi visitar; o cravo teve um desmaio, a rosa pôs-se a chorar.
Esta “cantiga” é de uma enorme complexidade e merece estudo mais aprofundado sobre as relações humanas. (Aqui só Freud ou Jung!). De outro lado, tomando-se o caso como sendo uma “briga de marido e mulher”, o que se percebe é que o casal chegou às vias de fato e um “saiu ferido” e o outro “despedaçado”. Coisa horrível para um casal. Além disso, o reencontro também é muito complexo, pois o Cravo (ferido e doente) sofre um desmaio ao visitar a Rosa (despedaçada), que pôs se a chorar. Não seria melhor que tivessem se reconciliado após uma boa mediação?
IX – Terezinha de Jesus de uma queda foi ao chão. Acudiram três cavaleiros todos três, chapéu na mão. O primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão, o terceiro foi aquele que a Tereza deu a mão. Terezinha de Jesus levantou-se lá do chão e sorrindo disse ao noivo: eu te dou meu coração! Da laranja quero um gomo, do limão quero um pedaço, da morena mais bonita quero um beijo e um abraço
Chegamos ao fim com este belo exemplo de igualdade, solidariedade, fraternidade e amor. Os três cavaleiros são iguais pela condição de cavaleiros e os três “chapéu na mão”. Todos acodem uma pessoa caída e dois deles fazem parte de sua família (o pai e o irmão). Ao final, Terezinha se enamora com o terceiro cavaleiro e lhe dá o coração, ou seja, tudo termina em beijos e abraços.
Quem souber, que conte outra…
Gerivaldo Alves Neiva, Juiz de Direito