Certa vez, depois de ouvir uma pessoa reclamando de que eu, como Juiz de Direito, não teria agido com autoridade esperada por ela, conversei comigo mesmo: Deus não dá asa a cobra! Este fato aconteceu na estação rodoviária de Salvador (Ba), há muitos anos, quando um vigilante me impediu de ter acesso à plataforma de desembarque e eu aceitei pacificamente sua imposição. Este episódio foi objeto de uma crônica publicada no blog (www.gerivaldoneiva.com) com o título “Você sabe com quem está falando?”.
Na verdade, não posso negar que algumas vezes já tive uma vontade terrível de resolver algumas situações de outro modo. Assim acontece, por exemplo, quando vejo alguém ocupar, por puro comodismo, uma vaga de estacionamento destinada à deficiente ou pessoa idosa. A vontade que sinto é de abordar a pessoa e lhe dizer um tanto de impropérios, aplicar uma multa altíssima ou lhe proibir de dirigir e lhe obrigar a um curso de boas maneiras.
Também quando leio notícias escandalosas sobre corrupção envolvendo agentes e servidores públicos, a vontade que sinto é de chamar um oficial de justiça e lhe entregar um mandado de prisão. A revolta é maior ainda quando a notícia envolve um juiz, desembargador ou ministro de tribunal. Nessas oportunidades, sempre lembro de meu pai, exemplo vivo do que seria a ética, quando assistíamos juntos um telejornal noticiando atos de improbidade cometidos por um juiz de direito, perguntando incrédulo: mas não são os juízes os homens que conhecem a lei e devem dar o exemplo de honestidade? Nessas horas, a resposta só pode ser o constrangimento e a vergonha alheia.
Além dessa minha vontade individual de resolver as coisas de outro modo, também já ouvi de pessoas da comunidade uma cobrança de ações enérgicas com relação a todas as espécies de desmandos que lhes causa indignação. É aquela velha estória: ah, se eu fosse juiz!! É verdade que também já ouvi pessoas comentando sobre os juízes de suas comarcas que fazem e acontece. Casos de juízes que saltam de veículos de arma em punho para coibir uma manobra ilegal de motorista, juízes que baixam portarias disciplinando a liberdade das pessoas e até horários de funcionamento de bares, juízes que fazem audiências com arma sobre a mesa, juízes que só trabalham dois dias na semana e outros absurdos mais. Eu mesmo, há muitos anos, quando ainda era advogado, conheci um juiz que durante uma audiência ou conversando com pessoas repetia várias vezes: “eu lhe meto na cadeia!”. Também já ouvi de pessoas da comunidade, servidores da justiça e advogados comentários sobre a falta de ética e honestidade uns dos outros e de juízes, delegados e promotores.
Enfim, esta minha indignação tem duas faces: uma para fora e para os desmandos que eu mesmo presencio e praticados por pessoas comuns e outra interna e para os desmandos praticados por pessoas que fazem parte do meu universo de trabalho. Em ambas as hipóteses, no entanto, é o mesmo sentimento de fraqueza diante desses fatos e da dificuldade que o judiciário brasileiro tem para punir essas condutas, dando vez ao “diabinho” do autoritarismo e da vontade de sair por aí “fazendo justiça”!
Esta minha vontade, porém, é recolhida quando me lembro que em 1215, quando por aqui, nesta terra brasilis, habitavam pessoas que nem sabiam da existência da Europa, os barões ingleses impuseram ao Rei João Sem Terra a Carta Magna[2] e limitaram seu poder absoluto. Segundo os termos da Magna Carta, o rei deveria renunciar a certos direitos e respeitar determinados procedimentos legais, bem como reconhecer que sua vontade estaria sujeita à lei. Alguns consideram a Magna Carta como o primeiro capítulo de um longo processo histórico que levaria ao surgimento do constitucionalismo.
Assim, aos que ingenuamente pensam que certos princípios constitucionais foram invenção do constituinte de 1988 [3], destaco da Carta Magna apenas dois artigos para desmistificar esta crença:
[…]
38 – No futuro, nenhum meirinho sujeitará qualquer homem a julgamento, fundado apenas em sua própria declaração, sem provas e sem produzir testemunhas para demonstrar a verdade do delito alegado.
39 – Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado de seus direitos ou bens, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou despojado, de algum modo, de sua condição; nem procederemos com força contra ele, ou mandaremos outros fazê-lo, a não ser mediante o legítimo julgamento de seus iguais e de acordo com a lei da terra.
[…]
Sendo assim, em respeito à este longo processo histórico, que no nosso caso culminou com a Constituição de 1988 e o estabelecimento dos princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da legalidade da prova e da presunção da inocência como cláusulas pétreas, deixo de lado minha vontade pessoal de fazer justiça como penso que seria o mais correto e fruto da minha “bondade” e me agarro, como única tábua de salvação neste naufrágio de valores, aos princípios e garantias constitucionais e, portanto, na obrigação de garantir, do usurpador da vaga do deficiente ao ministro corrupto, os direitos que a luta histórica da humanidade reconheceu a todos os acusados.
Portanto, não existem dois pesos e nem duas medidas. Não existem acusados especiais ou diferenciados e nem a Constituição pode ser relativizada ou mitigada para aceitar qualquer violação às garantias que ela mesma impõe. O que vale para o pobre, negro e excluído também há de valer também para o vereador, prefeito, deputado, senador, governador, presidente, juiz, desembargador ou ministro de tribunal superior. Neste caso, a aplicação do artigo 5o da Constituição não demanda qualquer dificuldade: todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza.
Por fim, mesmo indignado com a corrupção (principalmente de juízes), com a degradação da ética, da falta de estrutura do Poder Judiciário, do privilégio do poder (Boaventura de Sousa Santos), da parcialidade e da impunidade seletiva, creio firmemente que não existe mais lugar no mundo para juízes com o complexo de Nicolas Marshall (Alexandre Morais da Rosa) e, muito menos, para “juízes bandidos”. O Estado Democrático de Direito espera, creio eu, que o Juiz seja apenas Juiz de Direito e que cumpra seu papel de promover, nesta pátria de modernidade tardia e absurda desigualdade social, respeitando os princípios e garantias constitucionais, a realização da Justiça e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, fundada na cidadania e dignidade da pessoa humana, conforme preconiza a Constituição de 1988.
Gerivaldo Neiva* Juiz de Direito (BA), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), 29 de setembro de 2011.
[1] Nicolas Marshall era o nome do personagem principal do seriado “Justiça Final”, cujo título original era “Dark Justice”, exibida na TV brasileira nos anos 90. Nicholas “Nick” Marshall, era um ex-policial e ex-promotor de justiça. Ao tornar-se juiz, Marshall sofre diversas frustrações em seu trabalho de combate ao crime e, progressivamente, perde sua fé no sistema legal e se torna um justiceiro após sua família ser morta. Marshall, embora trabalhe normalmente durante o dia como Juiz, durante a noite se transforma e persegue criminosos que conseguem escapar de condenações através de artifícios legais. O texto de abertura da série em português resumia sua história: “Como policial perdi muitos casos devido a truques jurídicos, mas eu acreditava no sistema. Como promotor perdi muitos casos para advogados corruptos, mas eu acreditava no sistema. Como juiz eu procurei seguir a lei ao pé da letra, porque eu acreditava no sistema… até eles destruírem minha família. Daí eu parei de acreditar no sistema e passei a acreditar na Justiça.”
[2] A Magna Carta (cujo nome completo é Magna Charta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae (Grande Carta das liberdades, ou Concórdia entre o rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei Inglês), é um documento de 1215 que limitou o poder dos monarcas da Inglaterra, especialmente o do Rei João, que o assinou, impedindo assim o exercício do poder absoluto. Resultou de desentendimentos entre João, o Papa e os barões ingleses acerca das prerrogativas do soberano. Segundo os termos da Magna Carta, João deveria renunciar a certos direitos e respeitar determinados procedimentos legais, bem como reconhecer que a vontade do rei estaria sujeita à lei. Considera-se a Magna Carta o primeiro capítulo de um longo processo histórico que levaria ao surgimento do constitucionalismo.
[3] Art. 5o.
[…]
LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
(Publicado no blog do autor: http://www.gerivaldoneiva.com/