Na noite de 14 de março de 1985, o Brasil contava as horas para o fim do regime militar. Às 10h do dia seguinte, o general João Baptista Figueiredo passaria a faixa presidencial para Tancredo Neves, o primeiro presidente civil em 21 anos. A transição para a democracia ocorria sem sobressaltos. A festa estava pronta, as delegações estrangeiras instaladas. Durante o dia, o povo brasileiro acompanhara pela televisão as imagens do presidente eleito em uma missa realizada em sua homenagem em Brasília.
Faltando menos de 12 horas para a posse, sobreveio o choque.
Com fortes dores abdominais, febre alta, dificuldade respiratória e tremores, Tancredo Neves é internado às pressas no Hospital de Base de Brasília. Atônito, o país assiste pela TV ao comunicado do secretário de imprensa do novo governo, Antônio Britto, informando que o presidente sofrera uma cirurgia no intestino. Trinta e oito dias e sete cirurgias depois, morria, em São Paulo, o presidente Tancredo Neves. O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (6/4) pela TV Brasil relembrou a cobertura da mídia sobre a morte do presidente, um dos momentos mais dramáticos da história da República.
Para remontar este episódio, o programa entrevistou Mauro Salles, coordenador da área de comunicação do então presidente; Antônio Britto, secretário de imprensa e porta-voz de Tancredo Neves; José Augusto Ribeiro, biógrafo, jornalista e assessor de imprensa de Tancredo durante a campanha presidencial; Carlos Marchi, assessor de imprensa do presidente; Rubens Ricúpero, diplomata e assessor internacional de Tancredo Neves; Carlos Tramontina, jornalista da TV Globo que participou de toda a cobertura da internação do presidente no Instituto do Coração (Incor), em São Paulo, e o cineasta Silvio Tendler, que está produzindo um documentário sobre a trajetória do presidente.
Em editorial, Alberto Dines comentou a transição para a democracia: “O presidente Ernesto Geisel e o seu braço direito, Golbery do Couto e Silva, haviam preparado um cronograma preciso: lançaram a `distensão gradual e segura´ para evitar radicalizações, escolheram um general populista, João Figueiredo, como o último ditador e imaginaram que, em seguida, seria possível uma transição para a democracia. Sem traumas e revanches”. Dines enfatizou que o presidente adiou o tratamento para depois da posse porque estava “preocupado com a legalidade e a continuidade da Nova República”.
Os antecedentes da tragédia
Os primeiros sintomas da doença começaram a se manifestar ainda antes da vitória no Colégio Eleitoral. José Augusto Ribeiro afirmou que Tancredo Neves sabia que os órgãos de inteligência “patrulhavam” sua vida e, por isso, evitou submeter-se a exames. “Pelo que eu ouvi da própria Risoleta Neves, ele passou mal a primeira vez na noite de réveillon, na madrugada de 31 de dezembro para 1º de janeiro de 1985, duas semanas antes da reunião do Colégio Eleitoral. E havia os tais bolsões radicais dentro do governo, que queriam, como eles diziam, `virar a mesa´”, disse.
Carlos Marchi contou que a primeira percepção sobre o estado de saúde do presidente foi a de que “ele estava sempre com algum problema”. Com o passar do tempo, mais problemas apareciam. “Sabe aquela frase `ele não está bem´? A gente ouvia com uma frequência maior do que seria natural. Ele era fragilizado fisicamente, corporalmente, então deixava barato. Com o tempo isso foi se acumulando e às vezes a gente parava para pensar e chegava à conclusão: `Como passa mal o doutor Tancredo!´”, lembrou.
No fim de janeiro de 1985, uma semana após a vitória no Colégio Eleitoral, Tancredo Neves partiu para uma viagem de 15 dias pela Europa, Estados Unidos e outros países. José Augusto Ribeiro e Rubens Ricúpero, que fizeram parte da comitiva, contaram que o presidente parecia bem disposto durante a viagem. “Eu tenho a impressão que ele já sentia alguma coisa; agora, rememorando, eu vejo que às vezes ele apertava a barriga e tudo. Mas nós não percebemos isso”, relembrou Ricúpero. Apesar da extenuante agenda, o presidente eleito cumpriu todos os compromissos.
Surgem os primeiros boatos
Rubens Ricúpero comentou que durante a viagem um episódio despertou dúvidas. “No hotel, nós tivemos que chamar um dentista, porque na viagem de Lisboa para Washington, ele havia perdido uma coroa dentária. Pelo menos foi essa a explicação que me deram”, disse. Segundo o diplomata, houve uma outra versão para o fato que teve como origem o chefe da Casa Civil do presidente Figueiredo, João Leitão de Abreu. Em conversa com o jornalista Carlos Castello Branco, Leitão de Abreu afirmara que Tancredo tinha se sentido mal e precisou ser atendido por um médico. A informação foi publicada na coluna do jornalista e gerou boatos, mas não foi confirmada.
Na volta da viagem, já corriam rumores sobre a saúde do presidente. “Todo mundo comentava, as pessoas que foram com ele. O Mauro Salles, o pessoal da segurança comentava: `Como o doutor Tancredo tomou remédio´. E não se falava propriamente remédio, mas antibiótico. Então começou a me dar a impressão de que ele estava recorrendo a um tratamento mais caseiro do que o que era indicado para o caso dele”, lembrou Carlos Marchi. Mauro Salles destacou que o presidente tinha conhecimento das limitações da sua saúde, mas não acreditava que a infecção não fosse controlável.
Para Rubens Ricúpero, a resistência de Tancredo Neves à internação devia-se ao temor de que sua ausência na cerimônia de posse pudesse levar a um retrocesso na transição para a democracia. “Ele estava absolutamente convencido de que se tivesse que ser operado antes da posse, os militares provavelmente não entregariam o poder. Ele podia estar errado nesse julgamento, mas ele temia que isso acontecesse não só porque havia muitas divisões entre os militares, mas porque ele sabia melhor do que ninguém que o presidente Figueiredo não suportava o vice-presidente, José Sarney”, lembrou Ricúpero.
Conjuntura política
Dines perguntou a Antônio Britto o porquê de o presidente não ter realizado um tratamento médico quando surgiram os primeiros sintomas. Para o secretário de imprensa, é preciso fazer uma análise política do caso. “O movimento das Diretas não conseguiu êxito porque não foi aprovada a emenda, construiu-se um caminho de uma transição curiosa porque foi por via indireta. Por mais que o doutor Tancredo recebesse apoios, desmontasse a Arena e o PDS, sabia que se tinha aberto a possibilidade de fazer a transição, mas que havia quem não quisesse a transição. E que, portanto, era possível caminhar, mas era preciso ter cautela ao caminhar”, explicou.
Carlos Marchi enfatizou que aquele era um momento de extrema tensão por dois motivos. “O primeiro era o temor de uma reação pura e simples do meio militar”; o outro, era de que uma reação da extrema esquerda que pudesse justificar uma ação “retificadora”. “Pelo menos para mim ficou claro que o Tancredo foi um bonzo vietnamita que se imolou em praça pública. Ele ateou fogo às próprias vestes e silenciosamente, generosamente, se deixou queimar em defesa da democracia”, avaliou.
A internação do presidente pegou de surpresa até seus assessores mais próximos. “Eu lembro de ter ido para a casa mais cedo”, disse Marchi. “Mauro Salles, que era o nosso chefão na época, que comandava a comunicação do governo Tancredo, nos mandou para casa relativamente cedo. Entre nove e meia e dez horas ele ligou e disse: `Corre para o Hospital de Base porque o presidente está indo pra lá´. E ainda me lembro que perguntei: `Quais são as orientações?´ Ele disse: `Não tem orientações. Faça o seu melhor´.”
Antônio Britto relembrou o momento em que soube da internação. “Eu estava terminando de vestir o smoking para ir a uma daquelas festas que havia no dia 14 quando tocou o telefone. `Corre para o hospital.´ Eu, obviamente, sabia onde era o Hospital de Base, mas eu não sabia direito onde era a porta do hospital. Então, fiquei girando com o carro. Quando vi aquele tumulto, a frase que veio na minha cabeça foi: `Meu Deus do céu, a estreia vai ser essa?´. Era aquela multidão na frente do hospital, o país absolutamente em choque”, lembrou.
O caos dos primeiros momentos
O hospital não estava preparado para receber o grande número de pessoas que se dirigiram ao local em busca de informações sobre o estado de saúde do presidente eleito. “As pessoas entravam em todos os lugares. Era que nem formiga”, comparou Carlos Marchi. Além da falta de preparo do hospital, a curiosidade prejudicou a organização nos primeiros momentos da internação do presidente. “Dentro desse clima, também houve coisas absolutamente absurdas, como o nível de curiosidade fazer com que alguém se sinta no direito de assistir a um ato cirúrgico”, disse Antônio Britto.
Enquanto o presidente era operado e o Brasil recebia as primeiras notícias sobre o fato, a cúpula política debatia sobre quem assumiria a Presidência no dia seguinte. Além do fato de que o general Figueiredo não se sentiria confortável em passar a faixa a Sarney, porque o considerava um traidor, havia uma discussão constitucional. O vice-presidente poderia tomar posse se o presidente não fosse empossado?
Carlos Marchi relembrou um episódio que exemplifica o impasse. “Em dado momento, chamei um elevador e, quando a porta se abriu, tomei um susto porque estava tendo lá uma reunião profundamente institucional. Estavam lá o doutor Ulysses Guimarães, o general Leônidas Pires Gonçalves, que era o futuro ministro do Exército e o garantidor da posse ante a possibilidade de movimentos militares, o vice-presidente José Sarney, assustadíssimo, lívido, e o senador Fernando Henrique Cardoso. Eu disse: `Eu não entro nesse elevador´. Aí o doutor Ulysses fez um pequeno gesto com o dedo como quem diz `entra, você é da casa´. Eles iam falar como Leitão de Abreu, que era o chefe do gabinete civil do presidente Figueiredo, e a história era: `Dar posse ao Sarney ou não dar posse ao Sarney?´. O doutor Ulysses gritava no ouvido do Sarney: `Você vai tomar posse! É a nossa única opção!´. E o Sarney não queria tomar posse, ele queria que houvesse outra solução miraculosa que não fosse a posse dele”, contou.
Otimismo e precipitação
Antônio Britto avaliou que em um primeiro momento “foi um tumulto geral”, quando nem a imprensa nem o governo estavam organizados. Silvio Tendler relembrou que logo após a cirurgia, o neto do presidente, Aécio Neves, depois governador de Minas Gerais, concedeu uma entrevista em tom extremamente otimista. “Tem a declaração do Aécio Neves no hospital, anunciando eufórico que foi apenas um divertículo de Meckel e que no dia seguinte o Tancredo estará de pé, lépido e fagueiro para tomar posse”, disse.
“Tem um segundo momento onde as coisas materialmente se organizam, tem uma sala, tem uma rotina, mas a imprensa ainda não percebeu que a gravidade é muito maior do que aquela gravidade aparente. E eu também não percebi. E quem está comandando na verdade são os médicos. E os médicos estão comandando com uma visão de que tudo passa, tudo passará. Vai se resolver”, analisou Antônio Britto.
Uma semana após a internação, contrariando as informações oficiais de que o presidente tinha diverticulite, a Folha de S.Paulo publica em manchete que o presidente tinha um tumor benigno, causando grande polêmica. “Chega um terceiro momento que é onde aparece essa senhora tão importante na vida chamada `dúvida´, e eu começo curiosamente a receber informações relevantes tanto de dentro quanto de fora do hospital”, lembrou Britto.
Transparência
Para o jornalista, o episódio teve várias conseqüências positivas. Naquele momento, a imprensa percebeu que parte da cobertura sobre o que aconteceu no hospital podia e precisava ser feita fora do hospital. “Eu me lembro que a gente fez uma reunião [com os médicos] e eu disse: `Olha, a pior coisa que pode acontecer para o país é não se conseguir estabelecer o que é que é a informação correta. E se havia presunção de se manter um monopólio sobre o que está acontecendo, isso não é possível mais, nós estamos começando a viver em democracia, e vai ter que mudar´”.
Outra polêmica que ocorreu durante a internação em Brasília foi a sessão de fotografias do presidente com a equipe médica e com dona Risoleta Neves. Logo após a divulgação das imagens, o presidente sofreu uma intensa hemorragia interna e precisou ser transferido às pressas para São Paulo. “Nós temos ali uma infelicidade. Se eu soubesse hoje mais sobre a situação do presidente, eu deveria ter dito: `Dona Risoleta, mas será que o presidente está realmente bem assim?´. Seria difícil você dizer isso. E o que o médico me diria? Ia me prender por charlatanismo”, disse Antônio Britto.
O jornalista Carlos Tramontina comentou que a informação sobre o real estado de saúde do presidente não circulava livremente. “Tudo era decidido pela Presidência da República e pela família do doutor Tancredo Neves. Os jornalistas ficavam sempre do lado de fora, esperando a boa vontade. Até que em um determinado momento, a imprensa começou a romper esse bloqueio. Nós montamos, na TV Globo, uma equipe para obtenção de informações. Era uma equipe que trabalhava fora do Incor”, explicou.
“Ficou para os jornalistas e para a imprensa em geral uma lição muito grande. Primeiro, de que é preciso se preparar para grandes coberturas. E, segundo: você não depende da informação oficial. O jornalista tem, sim, condições de receber informações na sua fonte e com qualidade. Toda família do paciente tem direito à privacidade desse paciente, mas a família do presidente da República não ajudou em nada a veiculação de informações e o esclarecimento de que a população tinha o direito de saber”, disse Tramontina.
Fonte: Observatório da Imprensa