Anteontem pela manhã (segunda-feira), viajando de Salvador para Conceição do Coité, ouvia no rádio do carro um desses programas em que as pessoas telefonam reclamando da precariedade dos serviços públicos. De repente, a conversa entre o apresentador e um participante terminou descambando para o problema da violência urbana. Sem muita discussão, como solução simples e imediata, o apresentador do programa defendeu a redução da maioridade penal, argumentando que a cada dia aumentam os crimes praticados por adolescentes e “já que podem votar, devem responder pelos atos criminosos”.
Em seguida, entrou no ar a unidade móvel para informar as estatísticas criminais do final de semana (20 e 21 de abril de 2013) na região metropolitana de Salvador: 11 homicídios, 4 tentativas de homicídios e 54 roubos e furtos de veículos. Dentre as vítimas, segundo o boletim da SSP-Ba, dois menores: L.E.P da S. e H. de J.B. Ambos com 15 anos de idade, residentes em áreas pobres da região metropolitana de Salvador, talvez negros, talvez envolvidos com o tráfico, sem qualquer importância para a imprensa… apenas dados estatísticos.
Em outros blocos do programa, com muita indignação, atendendo novos ouvintes, o apresentador criticou a roubalheira que foi (ou está sendo) a construção, em Salvador, do menor, mais demorado e mais caro metrô do mundo; a greve dos professores das escolas estaduais; a falta de médicos em postos de saúde; ruas sem saneamento e esburacadas; a prisão de um juiz, delegado, servidores e advogados na Paraíba, acusados de esquema que “fabricavam” multas em processos judiciais; e outras mazelas próprias do tempo em que estamos vivendo.
No restante da viagem, fiquei a pensar, diante de tantos problemas sociais e tantas mortes em apenas um final de semana, por que razão estamos todos como se bestializados com a discussão em torno da redução da maioridade penal. O assunto tomou conta de programas de péssimo gosto na TV, em editoriais de jornais, nas escolas e ruas, nas redes sociais, salões de beleza e barbearias. Na gostosa e saudável anarquia que reina na Internet, a cada dia um texto novo e novas polêmicas. No fim, muita emoção, mitos e preconceitos e pouca razão e sensatez.
Retornando ao meu pensar viajante, continuei a me questionar por que a cada vez que uma pessoa é morta por um adolescente e esta morte é explorada por setores da imprensa, a discussão acerca da redução da maioridade penal retorna à pauta nacional? Por que tantos outros menores são mortos diariamente por este imenso Brasil e essas mortes não repercutem e nem entram na pauta desta mesma imprensa? Por que aceitamos, sem qualquer indignação, que 11 pessoas sejam mortas em um único final de semana na região metropolitana de Salvador, sejam maiores ou menores de 18 anos? Enfim, por que esta seletividade da notícia e da repercussão diferenciada para fatos idênticos?
De início, sou levado a pensar, mas afasto imediatamente de mim este pensamento ignóbil, que só a vida de jovens ricos ou de classe média interessam ao noticiário nacional e que a vida dos jovens pobres não teriam o mesmo valor.
Levado pela mesma angústia em busca de resposta, cometo novo deslize em imaginar que para grande parte da imprensa deste país, sem pudor algum, se um jovem rico ou de classe média, embriagado, matar alguém com seu carro ou Jet Ski, o fato será noticiado como um mero acidente e o jovem, traumatizado, será devidamente apresentado ao delegado por um bom advogado e o rosto protegido por seu próprio paletó. De outro lado, divagando mais ainda, imaginei que para esta mesma imprensa, com muita preocupação social, se um jovem pobre, negro e excluído, para adquirir pedras de crack, matar um jovem rico ou de classe média, este fato será noticiado como sendo um crime hediondo e que merece forte reprimenda, quiçá a pena de morte, sendo o jovem fotografado e filmado, apenas de cueca, ao lado da arma e pedras de crack.
Retornando ao argumento racional e deixando meus devaneios de lado, pergunto-me: Parte da imprensa está mesmo se comportando dessa forma? Qual o interesse desses setores da imprensa em divulgar de forma tão distorcida? Estamos apenas repetindo clichês sem refletir sobre os fatos? A imprensa está nos impondo seus próprios conceitos e opiniões? As ideias que propagamos acerca da redução da maioridade penal e outras formas oficiais de violência estão sendo por nós elaboradas? Enfim, pensamos assim mesmo ou estamos sendo bestializados por parte da imprensa, fanáticos ou fundamentalistas para pensarmos assim?
Por exemplo, para um crente em qualquer divindade ou praticante de qualquer religião que prega a solidariedade, compaixão e humanismo, defender a redução da maioridade penal para punir jovens pobres e historicamente excluídos, ou a pena de morte, não seria um grave pecado, perante seu Deus e irmãos de crença, aceitar e permitir que uns sejam apedrejados e outros perdoados pelo mesmo crime?
Em outro exemplo, para um jurista, estudante de direito ou qualquer membro das carreiras jurídicas, orientados que devem ser pelos princípios inscritos na Constituição Federal, que estabelece como objetivo da República a construção de uma sociedade livre justa e solidária, fundada na cidadania e dignidade da pessoa humana, também não seria uma forte contradição defender ações, sob argumento de vingar a morte de um, contra a vida e dignidade de outro?
Enfim, por que alguns de nós estão sendo levados e pensar assim: embora religiosos, seletivos quanto ao perdão; embora juristas, defendendo a vingança como forma de justiça.
Não creio que seja apenas pelo poder da imprensa e da ideologia, pois se assim o fosse não haveria discrepância na forma de pensar, dado o monopólio da informação no Brasil, ou seja, o Jornal Nacional e programas de péssimo gosto nascem para todos nas manhãs e noites do Brasil. Além disso, para combater o ódio e parcialidade da imprensa, os crentes deveriam se valer de seus princípios religiosos e livros sagrados, bem com os juristas deveriam se valer dos princípios, das garantias fundamentais e da Constituição.
Quero crer, por fim, que há muito mais entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia. O sentimento da vingança e o prazer de ver o sofrimento alheio não podem ser explicados e nem aliviados somente por princípios religiosos ou normas legais. Esta bestialização tem causas que remontam ao nosso primitivismo e luta pela sobrevivência. Pensamos, apenas pensamos, que renunciamos à estes sentimentos em favor da civilização, mas nosso comportamento tem demonstrado, ao longo da história da humanidade, que não controlamos eficazmente as “bestas” que habitam nosso inconsciente.
Assim, talvez Freud estivesse certo ao defender que ao lado da teoria evolucionista e do heliocentrismo, a sua própria descoberta do inconsciente figuraria como sendo a terceira ferida narcísica da humanidade, ou seja, para nossa grande decepção, não nascemos de Adão e Eva, a terra não é o centro do universo e, segundo Freud, não somos sequer donos de nossos pensamentos. Assim, neste grande mal estar que se tornou a civilização, somos todos como Narciso diante de um espelho quebrado, pois além de não sermos tão belos como pensávamos, não temos mais o espelho para admirar uma beleza que não existe mais ou que nunca existiu!
Ora, os crimes cometidos por adolescentes, no universo de todos os crimes, são insignificantes; os crimes contra a vida praticados por adolescentes, estatisticamente, também são insignificantes; a prisão não tem o poder de trazer de volta os mortos e nem de recuperar socialmente os vivos, apenas satisfaz nosso sentimento de vingança; reduzir a maioridade penal não tem qualquer relação com a redução da criminalidade e, ao contrário, estaria desgraçando mais cedo a vida de mais jovens e alimentando com “pessoal especializado” em penitenciárias o tráfico e o crime organizado. Enfim, a discussão sobre a redução da maioridade penal, da forma proposta por quase a totalidade da imprensa brasileira, é uma discussão sem sentido, infrutífera e terrivelmente bestializante.
Por fim, para enfrentar esta discussão com serenidade e racionalidade, talvez estejamos precisando de mais psicanálise e mais Freud e menos Lombroso e Direito Penal. Mais filosofia e menos Direito. Mais alteridade e menos vingança. Mais proteção e menos punição. Mais responsabilidade do poder público e menos abandono. Enfim, mais humanismo e menos bestialidade.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Porta-Voz no Brasil do movimento Agentes da Lei Contra a Proibição (Leap-Brasil)