Fotos de crianças são todas lindas. Não existem crianças feias. O sorriso de uma criança talvez seja uma das mais belas expressões de inocência, ingenuidade e de como todos nós, lá no fundo, gostaríamos que fossem todas as pessoas, que fosse a vida e, sobretudo, que o mundo fosse assim: belo e inocente.
Aliás, talvez Deus queira se comunicar com os homens através dos sorrisos das crianças para nos dizer com sua voz afável de pai:
– Olhem, quando Eu os criei à minha imagem e semelhança, quis dizer com isso que todos são meus filhos e que um pouco de Mim, da minha divindade, está em cada um de vocês.
Pois bem, quando vejo fotografias de personalidades históricas que causaram tanto mal à humanidade, de ditadores sanguinolentos ou de delinquentes comuns que praticaram crimes cruéis, sinto uma grande curiosidade de ver as fotografias dessas pessoas quando ainda eram crianças, de preferencia sorrindo, e tentar encontrar naquele sorriso alguma explicação.
Procurar entender, talvez, por que a criança linda que sorria inocentemente se transformou naquele adulto que mata outras crianças. Não, não é possível que Deus tenha pretendido isto. Se Ele mesmo disse que nos criou à sua imagem e semelhança, por que haveria de querer que seus filhos se matassem uns aos outros?
Talvez uma sucessão de fotos dessas crianças transformadas em ditadores sanguinolentos ou delinquentes comuns nos indicasse alguma possibilidade de entender esta transformação. Como pano de fundo de cada foto, a paisagem da vida de cada uma delas: sua infância, seus pais, sua família, sua rua, seus amigos, seus professores, seus ídolos, suas experiências, suas crenças, seus medos, suas angústias, seus desejos, suas oportunidades, seus amores, suas frustações…
Não sei se querendo ou não, mas às vezes penso que os escritores do Estatuto da Criança e do Adolescente, ao estabelecerem o princípio da proteção integral e demais garantias às crianças e adolescentes, talvez estivessem querendo perpetuar os sorrisos de TODAS as crianças como criaturas de Deus, à sua imagem e semelhança.
Portanto, antes de se discutir acerca da punição ou a partir de quantos anos deveríamos punir nossas crianças e adolescentes, é de fundamental importância conhecer a vontade do ECA para que TODA criança se transforme em um adulto que teve uma infância normal.
Por fim, aos que defendem contra ou a favor da redução da maioridade penal, retomar e fazer efetivar o ECA é discussão que precede à qualquer proposta punitiva, além daquelas já previstas, ou alteração na idade para que um adolescente seja responsabilizado ou punido por infrações.
De logo, vamos aos primeiros artigos do ECA. Uma observação inicial aos navegantes: sempre leia o ECA pensando em TODAS as crianças, e não apenas em seus filhos ou nos “meninos de rua.” O ECA serve para TODAS as crianças, repito.
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Pergunto: quando deixamos de cumprir efetivamente os artigos 3o. e 4o. do ECA – garantir a TODAS as crianças o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, liberdade, dignidade, vida, saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, convivência familiar e comunitária – não estamos retirando violentamente o sorriso inocente dos lábios das crianças e, ao longo do tempo, transformando inocência em violência?
Vamos ver mais ECA:
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Pergunto: quando o Estado e seus poderes – executivo, legislativo e judiciário – permitem que crianças (TODAS as crianças, repito) sejam vítimas de crueldade, opressão, discriminação, exploração e que se omitem no desenvolvimento de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento sadio e harmonioso das crianças, também não estamos sendo cúmplices nesta transformação de sorriso inocente em olhar cruel?
Sendo assim, depois que lhes retiramos o sorriso inocente dos lábios e lhes impusemos o ódio no coração e crueldade nos desejos, às antigas crianças, agora transformadas em “menores infratores”, com imensa e inexplicável maldade, queremos impingir-lhes mais sofrimentos com punições cada vez mais cruéis. Ora, já não basta terem perdido o sorriso? Já não basta serem o lixo do mundo? Já não basta terem sido excluídos da sombra do grande guarda-chuva chamado contrato social? Já não basta terem sido excluídos da paternidade de Deus?
Nossa crueldade é tamanha que nem mesmo nos importamos em efetivar o ECA no que diz respeito ao cumprimento das medidas socioeducativas. Na verdade, está escrito que a partir de 12 anos de idade, o adolescente pode sofrer medidas socioeducativas, podendo chegar à internação (ou prisão?) por 3 anos, mas agora queremos que cumpram pena de prisão em estabelecimentos penais.
Efetivamente, nós somos muito piores do que adolescentes infratores. Nós, cultos, civilizados e educados, somos infinitamente mais violentos e cruéis do que eles. Ora, tiramos ou permitimos que lhes fosse tirando o sorriso inocente de criança (imagem de Deus) de seus lábios, jogamos-lhes na rua, tiramos-lhes tudo e, por fim, agora como vítimas do ódio que nós mesmos regamos, para concluir nossa maldade, queremos que cumpram castigos em penitenciárias abarrotadas de adultos (crianças sorridentes um dia?) que praticaram toda a sorte de crimes.
A punição a sofrer por seus atos infracionais deve ter o sentido único de lhe devolver o sorriso aos lábios do adolescente embriagado de escárnio ou crack e jamais de lhe impingir mais ódio no coração. Se é para lhe privar da liberdade, que ao mesmo tempo lhe ofereça tudo o que lhe foi até então negado: cuidado, carinho, educação, saúde, cultura, esporte, diversão, oportunidades e, sobretudo, a dignidade!
Por fim, em nossa travessia democrática, que custou a vida de tantos heróis, estamos nos valendo de uma Constituição e das leis decorrentes dela (ECA e tantas outras). Se agora abandonarmos este barco, rasgando nossa Constituição e outras conquistas legislativas, vamos morrer abraçados em um mar revolto e sem ilhas à vista. Mesmo com velas remendadas e cheio de vazamentos, este é o barco que temos. Se a travessia está difícil com este barco, sem ele vamos permanecer por mais um longo período da história na margem sombria do arbítrio e prepotência.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Porta-Voz no Brasil do movimento Agentes da lei contra a Proibição (Leap-Brasil).
Gerivaldo Neiva, membro da AJD e Leap-Brasil