Dentre as muitas sabedorias de Garrincha, o “anjo das pernas tortas” e que fazia a “alegria do povo”, conta-se que na copa do mundo de 1958, depois da preleção do técnico Vicente Feola traçando o caminho do gol com jogadas de Zito, Didi, Nilton Santos e Mazzola, o sábio Garrincha teria perguntado candidamente ao inventivo técnico: “Seu Feola, mas o senhor já combinou tudo isso com os russos”?
Pois bem, ao ler tantos comentários e análises políticas e jurídicas acerca das manifestações que ocorrem em todo o país, lembro-me da sabedoria de Garrincha e pergunto: “mas os senhores já combinaram tudo isso com o povo nas ruas”?
De fato, fala-se agora em constituinte com finalidade específica para a reforma política, PEC disso e daquilo, plebiscito para que o povo diga o que quer, agenda positiva no Congresso Nacional, taxação de grandes fortunas e outras ideias mirabolantes. Como início da tal agenda positiva, por exemplo, a Câmara esmagou a PEC 37 e anuncia outras votações polêmicas para breve. Cuide-se, portanto, a “cura gay” e outras bobagens em tramitação no Congresso Nacional.
De outro lado, segundo o site Causa Brasil – que identifica os temas mais abordados dentro do Facebook, Twitter, Instagram, YouTube e Google, com metodologia de pesquisa por palavras-chave, a cada hora –, a causa “reforma política” ficou à frente de outras causas durante todo o dia entre 24 e 25/06, cedendo a liderança para a causa “saúde” apenas na noite de 25/06.
Como se vê, portanto, o governo federal e o Congresso Nacional, definitivamente, sentiram o golpe e começam a apontar soluções para os graves e históricos problemas desse país. Metaforicamente, é como se o governo e o congresso começassem, embora tardiamente, organizar um time e traçar uma estratégia de jogo.
O problema número 1 é que o técnico Feola traçava uma estratégia com seus comandados em um jogo de futebol com regras claras e jogadores definidos. Sabe-se, por exemplo, que falta na área é penalidade máxima, que cada tempo de jogo dura 45 minutos e assim por diante. O “anjo das pernas tortas”, com sua irreverência, poderia até sugerir alternativas fora das regras do jogo. Também metaforicamente, é como se Garrincha estivesse propondo alternativas violadoras da ordem estabelecida, ou seja, contra a “constituição” que rege o futebol. Evidentemente que o técnico Feola iria descartar de pronto as sugestões de Garrincha e estabelecer os limites das jogadas, observando-se as regras do jogo e utilizando-se apenas da criatividade e capacidade técnica de seus jogadores. E se Garrincha conseguisse convencer os demais jogadores e insistissem em desrespeitar essas regras?
O problema número 2 é que o governo e o congresso tem o conhecimento das regras do jogo – competências, iniciativas, leis, resoluções, prazos e, principalmente, uma Constituição a ser obedecida -, mas de tanto desobedece-las para satisfazer o interesse de poucos, é como se não tivesse ainda um time formado e terminou passando para o povo que o jogo não tem regras claras e que basta, portanto, uma canetada para determinar, por exemplo, que todos os brasileiros terão passe livre nos transportes públicos. Evidentemente que caberá ao Supremo Tribunal Federal estabelecer os limites constitucionais das medidas anunciadas com fundamento na Constituição, determinando que se utilize apenas a criatividade e a capacidade técnica dos agentes do governo. Por fim, como não se faz omelete sem quebrar os ovos, e se o povo continuar insistindo em soluções para além da ordem constitucional?
Dessa forma metafórica, creio que resta pouco para se analisar sobre o presente e a importância das manifestações no Brasil. O grande desafio que vejo é tentar estabelecer as regras do jogo que está apenas começando e daí convencer a todos os jogadores que essas regras não podem ser violadas durante a disputa. Assim é preciso que todos entendem que falta na área é penalidade máxima e que a democracia é a condição fundamental para a existência da própria disputa política.
Por fim, como o bonde da História não tem freio, é certo também que o povo tem o poder de mudar tudo, estabelecer outras regras e até inventar outro jogo para ser jogado, mas para tanto seria necessária a ruptura da ordem atual, outro cenário, outros atores e novas relações econômicas e sociais.
Isto é possível? Claro que sim. E é este o momento histórico?
Gerivaldo Neiva * Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do movimento Agentes da Lei contra a Proibição (Leap-Brasil).