Para a mitologia grega, no início era o Caos absoluto, escuridão, desordem e confusão. Mas é exatamente desse Caos que surgirá Gaia, uma Deusa imponente e bela. Gaia é o chão firme que o Caos necessitava. É a matriz da vida, das plantas, dos animais e dos Deuses que em breve habitariam o Olimpo. Caos e Gaia, portanto, são imensamente diferentes, contraditórios e imprescindíveis um ao outro.
Porém, sem algo que os una e harmonize, Caos e Gaia, sozinhos, ainda não bastam ao mundo. É preciso que se tornem férteis e façam brotar a vida. É Eros, com seu amor e energia, quem vai fazer este papel de propiciar a explosão da vida nas entranhas de Gaia e dar algum sentido ao Caos. Assim, pela força do amor de Eros, Gaia irá gerar Urano – o Céu – de seu próprio ventre e, permanecendo coberta por ele, gerará dentro si os 12 filhos de Urano: os Titãs e as Titânidas.
O resto dessa história, como nos conta Hesíodo, será marcado por guerras de Titãs, uniões, traições, amor, paixão, ódio e todos os demais ingredientes que compõem a tragédia humana em sua saga sobre Gaia. Apenas para ilustrar, Cronos, filho de Gaia e Urano, revoltado com o pai que não permite que os filhos nasçam, corta-lhe o órgão e atira ao mar. Das gotas de sangue sobre a terra, nascerão outras divindades e do órgão de Urano, jogado ao mar, nascerá Afrodite. O mesmo Cronos, temendo a mesma sorte do pai, depois de ter casado com a Titânida Reia, engole os próprios filhos após o nascimento. Reia, ajudada por Gaia, esconde um dos filhos e engana Cronos. Este filho será Zeus, o maior de todos os Deuses do Olimpo. Sem esquecer, por fim, que Zeus, antes de se casar com Hera, filha de Cronos e Reia, ainda se casará com Metis (filha da Titãnida Tetis), e com Temis, filha de Gaia e Urano, com quem terá muitos filhos.
Pois bem, Urano, depois que seu filho Cronos lhe cortou o órgão, recolheu-se ao firmamento formando o Céu e, com isso, estabeleceu-se o espaço e o tempo. Agora, sem a cobertura sufocante de Urano, os filhos de Gaia puderam conhecer o espaço exterior à barriga da mãe. A saga dos Titãs (Oceano, Ceo, Crio, Ipérion, Jápeto e Cronos) e das Titânidas (Teia, Reia, Temis, Minemósine, Febe e Tétis) estava apenas começando…
Para outras mitologias, a terra – Gaia – foi então povoada por animais e plantas, tornando-se “natureza” bela e harmônica, onde tudo se completa. No entanto, a desordem e confusão herdados do Caos e a agonia de Gaia com os filhos presos ao ventre jamais deixaram de povoar e determinar a tragédia humana.
Continuamos esta saga, por assim dizer, nascendo da morte. Óvulo e espermatozóide, embora resultantes de um ato de prazer entre dois corpos, morrem pela vida. Os grãos, na bela metáfora de Gilberto Gil, precisam morrer para germinar/plantar nalgum lugar/ressuscitar no chão.
A flor, por mais bela que possa parecer, não deixa de ser a explosão da vontade da árvore em se perpetuar, beleza passageira, destinada a ser semente e morte. Antes, para explodir em flor, suas raízes agridem e perfuram o chão em busca de nutrientes, matéria orgânica do que um dia também já foi vida. É o caos e a desordem herdados de Gaia e Urano.
A correnteza do rio, na visão aguda de Brecht, é violenta por causa das margens dos rios que a oprime. A cachoeira em “véu de noiva”, por mais bela que possa parecer, um dia já foi neve que se precipitou montanha abaixo, formando rios destinados ao suicídio em algum mar. Antes, será ainda oprimido por margens sólidas e precipícios que massacrarão seu leito em catastrófica e espetacular queda.
No caos e na desordem do reino animal, quando pagamos a conta com uma nota de cem reais, não percebemos que estamos afagando uma garoupa impressa em um dos seus lados. Não nos passa pela mente, nem de longe, que a garoupa é um ser hermafrodita sequencial do tipo protogínico, ou seja, nos primeiros estados de maturação sexual são fêmeas e, mais tarde, convertem-se em machos.
Quando viramos a terra do jardim ou do vaso com flores, também não imaginamos que as minhocas são seres sexuais hermafroditas incompletos, pois cada indivíduo tem testículos e ovários e não se reproduz sozinho, dependendo sempre do acasalamento para troca de espermas e possibilitando que cada um fique “grávido” do outro.
Nesta maravilha de caos e desordem, herança genética de Gaia e Urano, torna-se impossível, por fim, justificar qualquer forma de preconceito ou discriminação com fundamento na harmonia ou em suposta ordem natural das coisas. Na verdade, é exatamente a desordem e a diferença que nos faz viver e continuar nesta busca que parece sem fim. Como diz Maria Rita Kehl (Ética e Psicanálise, Cia das Letras, 2002, p. 14), “não vamos nos iludir: o pleno gozo é tão impossível de se realizar quanto a renúncia absoluta a qualquer forma de gozo”.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do movimento Agentes da Lei contra a Proibição (Leap-Brasil)
Gerivaldo Neiva, membro da AJD e Leap-Brasil