Neste momento ouço Tom Jobim. Embora sua maravilhosa harmonia não tenha nada com truculências, um dos seus mais famosos versos nos remete ao tema aqui abordado. Em 1º de abril próximo completarão cinquenta anos que águas de março fecharam um verão, quando, como na música de Chico, depois que a banda passou, cada qual no seu canto e em cada canto uma dor.
De minha parte, não gosto de nominar o movimento que completará sua malsinada bodas de ouro como golpe militar. É que os atos que cominaram com a deposição de Jango não tiveram nos quartéis os seus únicos palcos. Exemplo mais eloqüente do que digo foi a Marcha da Família Com deus Pela Liberdade, ocorrida em 19 de março de 1964, em S. Paulo, organizada por segmentos conservadores da sociedade e que contou com o apoio de grande contingente da classe média. E vitoriosa a conspiração, diversas marchas do mesmo naipe ocorreram pelo País afora em sua comemoração, numa clara prova do seu respaldo social.
O motivo que me leva a focar os 50 anos do golpe de 64 é o que leio na última pesquisa divulgada pelo DATAFOLHA. Ela revela um certo pessimismo da população, sobretudo dos assalariados, com a situação econômica do País e que 67% dos entrevistados deseja mudanças por parte do próximo governo. Entretanto, deste contingente, 28% vê no ex-presidente Lula o condutor dessas mudanças, 19% enxerga na Presidente Dilma tal papel e 14% atribuem tal poder ao Ministro Joaquim Barbosa. Ora, e o que tem uma coisa com a outra?
Dentre suas pérolas, Raúl Seixas nos fala de um dito cidadão respeitável que ganha 4 mil Cruzeiros por mês e que conseguiu comprar um Corsel 73. Pois bem, foi justamente esse cidadão respeitável que em 64 acreditou que havia um perigo comunista no País, que iria lhe tirar o carro e a casa; que anestesiado pelo Tri de 70 e pelo milagre econômico, ficou indiferente as violações aos direitos humanos e liberdades democráticas praticados sob o manto do AI nº 5; que, em grande parte só embarcou nas Diretas pelo desastre econômico do Governo Figueiredo; que em 89, podendo dar uma guinada na História do Brasil, entrou na canoa Colorida ainda em defesa do seu sonho pequeno burguês; e que, sinceramente desconfio, também só participou do Fora Collor porque ele prendera sua poupança. Enfim, para o dito cidadão respeitável a questão democrática nunca foi a primeira de suas preocupações.
Ah! O que é isto que eu digo? Tanto Lula quanto Dilma são de esquerda, foram eleitos pelo povo livremente e não representam qualquer ameaça a democracia e coisas que tais! Acha que sou é um anti-petista e ponto final!
Calma, cara pálida! Democracia é muito mais que a ocorrência de eleições e a sucessão de mandatários no poder. E depois que Fernando Henrique nos meteu goela abaixo a reeleição, inaugurou-se no Brasil (e por que não dizer na América Latina?) formas de agredi-la sem necessariamente recorrer a rupturas institucionais. Portanto, a minha encrenca não é apenas com o PT, mas com o que ele tem representado, isto é, uma concepção golpista de se fazer política, sempre na perspectiva do hegemonismo.
Ora, direis, certo perdeste o senso, afinal o PT tem jogado o jogo tal como o encontrou. E eu vos direi, no entanto, que o problema é justamente isto, pois o Lulopetismo se esmerou em todas as práticas que antes condenara, sobretudo naquilo que tanto denunciara em FHC, o tal pensamento único. Nesta senda, procura por vários meios, inclusive institucionais, tutelar imprensa, Judiciário e Ministério Público; pelas mais rasteiras formas, construiu no Congresso uma base parlamentar jamais vista na História deste País, cuja grandeza (apenas numérica) anula a ação da minoria; e na sociedade, tratou de cooptar todos os movimentos reivindicatórios. E o dito cidadão respeitável fica no trono do seu apartamento, já que tem desfrutado de uma razoável sensação de bem-estar econômico e, por isto mesmo, questões republicanas, por ora, não entram na sua agenda
E o que ainda lhe desperta alguma preocupação é o combate a corrupção. Não é por outra que, quando procura fora do Lulopetismo um timoneiro das mudanças aguardadas, busca-o em uma figura que prestou um grande serviço ao País ao julgar o mensalão. Mas, pêra lá, o que fez o Ministro Barbosa não foi nada mais que sua obrigação. E, tirando esse lado, não esqueçam do seu pavio curto, o que não é nada recomendável para quem, na mais alta magistratura da Nação, vai ter que lidar a todo o instante com o contraditório de idéias.
Concluo que a classe média passou, pelo menos, nestes últimos cinqüenta anos, mais preocupada com o seu sonho de consumo do que com as questões institucionais do País. Assim, confirma-se a célebre frase de James Carville: é a economia, estúpido! Mas, já que por uma sensação de bem-estar econômico, relegamos a radicalidade democrática a plano secundário,não custa lembrar que há pouco éramos emergentes, e pela auto-suficiência e irresponsabilidade destes em quem o uma maioria ainda acredita, passamos a condição de frágeis. E retornando a tom, é pau, é pedra, e tomara não seja o fim do caminho.
MARIO LIMA
ADVOGADO E PROCURADOR DO ESTADO DA BAHIA