O sacristão da Igreja de São Sebastião, enquanto cantarolava baixinho canções religiosas e pensava nos preparativos da missa de logo mais, com muito cuidado e zelo, espanava a imagem do santo padroeiro de sua igreja. Assombrado e incrédulo, viu quando uma das flechas, fincadas por séculos na imagem do santo, ganhou vida, trepidou para os lados, soltou-se da imagem e, literalmente como uma flecha, disparou em ziguezague por entre outros santos em busca de uma fresta de janela.
Perto dali, um ladrão maltrata e se diverte enquanto aponta um revólver engatilhado para a cabeça de sua vítima. Enquanto espera a morte, a pobre vítima é instada a rezar e, mesmo sem nunca ter rezado, clama por todos que lhe salve a vida. Após um forte clarão, o ladrão que lhe aponta o revólver é alvejado e morto por uma certeira flechada, a flecha de São Sebastião.
Ainda atônita, a vítima, ainda sem saber quem seria o santo salvador que lhe atendeu, entra em uma igreja para agradecer a todos os santos e, então, é advertido pelo assustado sacristão para que não toque nas imagens, pois estava em investigação o sumiço de uma das flechas na imagem de São Sebastião.
Em resumo, este é o roteiro da música “Milagre da Flecha”, de Moacyr Franco, gravada pelo próprio e diversas duplas sertanejas, a exemplo de Milionário e José Rico, Zezé de Camargo e Luciano e João Mineiro e Marciano.
Mas o que o sumiço da flecha de São Sebastião tem a ver com a crise do Direito Penal?
Em primeiro, é preciso ressaltar que um certo Direito Penal funciona a pleno vapor neste país e abarrota as penitenciárias de delinquentes comuns, pequenos traficantes, jovens, negros, pobres, sem escolaridade e sem profissão. Não mais vagas para presos no sistema penitenciário. Logo, não há o que se falar em impunidade como causa da crescente criminalidade e violência urbana. Na verdade, aliás, existe neste país uma impunidade seletiva proporcionada pela ineficácia, ou muita eficácia, do sistema de justiça criminal que não consegue levar as investigações e os processos ao final para condenar os criminosos de colarinho branco ou de outras cores.
Em segundo, é preciso ressaltar que o sistema penitenciário brasileiro é comandado por facções criminosas que negocia diretamente com carcereiros, diretores de presídios, emissários de secretários de segurança pública e governadores de estado. Um local com regras e governo próprios. Não foi isso que aconteceu em São Paulo com o PCC?
Sendo assim, está longe, muito longe, de ser o sistema penitenciário o local da educação, formação profissional e oferecimento de oportunidades para que os presos saiam da prisão com possibilidades mínimas de inserção no mercado de trabalho e retomada de uma vida com dignidade. Na verdade, o formato atual de sistema penitenciário funciona como uma escola de aperfeiçoamento no crime. Ninguém sai de lá incólume da maldade e perversidade.
Mesmo diante desse quadro desesperador, um jurista tem a obrigação constitucional de defender o Estado Democrático de Direito, as garantias constitucionais e a observância radical dos Direitos Humanos. Não pode cogitar qualquer possibilidade de solução da criminalidade com medidas alheias ao ordenamento jurídico constitucional. Aliás, um jurista que jurou defender a Constituição e, movido por noticiários eivados de ódio social, defende a pena de morte ou mesmo justifica as ações de justiceiros, sem sombra de dúvidas deve mudar de ramo.
O problema que nos atormenta, no entanto, é a crescente criminalidade urbana, a ineficácia do sistema prisional e a falta de resposta do Direito Penal a uma expectativa coletiva (falsa?) de que o sistema punitivo tem a força para garantir a paz social e a segurança de todos. Além disso, também nos atormenta saber que a delinquência comum, que causa ódio à elite nacional e setores influenciados pela mídia, está diretamente relacionada com a pobreza, desigualdade social, vergonhosa concentração de renda e falta de oportunidades sociais aos jovens desse país. Ficamos assim, portanto, espremidos pela Lei Penal que nos obriga condenar “vítimas” da exclusão social a regime fechado em penitenciária e, de outro lado, pela compreensão de que estamos apenas agravando um quadro para além do dantesco, como se enxugando enormes blocos de gelo que não cessam de chegar para serem enxutos.
Em consequência, a população exposta à violência e criminalidade, sem confiança no sistema de justiça criminal, como se em desespero, inebriada pelo ódio da mídia e descrente no Estado de Direito, é levada a acreditar em soluções milagrosas ou, em hipótese bem piores, em soluções alheias à ordem constitucional. Para outros, vale até mesmo patuás, galhos de arruda, miniaturas de imagens de santos no bolso ou na bolsa, rezas fortes e toda a sorte de simpatias. Nesta lógica, até mesmo a flecha sagrada da imagem de São Sebastião pode ser convertida em arma letal para matar outro ser humano.
O que precisamos estar atentos, por fim, é que o Estado Democrático de Direito é uma conquista histórica da humanidade e que devemos todos, no mínimo, respeitar a memória dos heróis que perderam a própria vida nesta luta. No mais, também precisamos estar atentos que São Sebastião foi um mártir cristão, barbaramente espancado e morto por imperador romano, acusado de ter conduta branda com os prisioneiros cristãos, apesar de ser um soldado do exército romano. Logo, as flechas que mataram um mártir cristão não podem servir de armas para matar o ladrão que nos ameaça com um revólver, pois o que queria Cristo, São Sebastião e nossa Constituição é construir uma sociedade, livre, justa e solidária, fundada na cidadania e dignidade da pessoa humana.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)
Eis a letra da música. Para ouvir no Youtube
Milagre Da Flecha
Letra de Moacyr Franco
Era alta madrugada, já cansado da jornada, eu voltava pro meu lar
Quando apareceu no escuro, me encostando contra o muro, um ladrão prá me assaltar
Com o revólver no pescoço, ainda expliquei pro moço, tenho filho prá criar
Sou arrimo de família, leva tudo, me humilha, mas não queira me matar
Mas o homem sem piedade, um escravo da maldade, começou me maltratar
Prá ver se eu tinha medo, antes de puxar o dedo, ele me mandou rezar
Eu nunca tinha rezado, eu que era só pecado, implorei por salvação
Elevei meu pensamento, descobri neste momento, o que é ter religião
Um clarão apareceu, minha vista escureceu, e o bandido desmaiou
E morreu não teve jeito, com uma flecha no peito, sem saber quem atirou
Nesta hora agente grita, berra, chora e acredita, que o milagre aconteceu
De joelho na calçada, perguntei com voz cansada, quem será que me atendeu
Já estava amanhecendo, a alegria me aquecendo, quando entrei na catedral
Cada santo que eu via, eu de novo agradecia, e jurava ser leal
Veja o santo de passagem, não me toque nas imagens, me avisou o sacristão
Pois lá ninguém explicava, uma flecha que faltava… na imagem de São Sebastião