Houve um tempo, quando atuava como juiz de vara criminal, que procurava relacionar todos os crimes que resultavam em ação penal com o uso de álcool e outras drogas. Assim, por exemplo, quando um dependente de drogas praticava um crime de furto de um botijão de gás no quintal da vítima, logo meu cérebro fazia uma espécie de sinapse e relacionava aquele crime ao uso de drogas. Ou então, quando uma pessoa embriagada, sem motivo aparente, causava lesão corporal na vítima, a mesma sinapse relacionava o crime ao uso do álcool. Em crimes de homicídio, quase sempre, meu cérebro descobria que o réu havia feito uso de alguma substância entorpecente. Mesmo quando se tratava de crime movido por ciúme ou sentimento parecido, pesquisava até encontrar algum tipo de droga no caso. Assim, o motivo principal era o ciúme, mas o réu sempre se encorajava para praticar o crime com alguma droga, lícita ou ilícita.
Depois de muitas condenações em regime fechado e o sentimento de realização da justiça e contribuição para a paz social, colecionava muitos casos que comprovavam minha tese. Por exemplo, o caso dos amigos que bebiam juntos e se mataram a facadas depois que um referiu-se à irmã do outro como “gostosa”; o caso do amigo que matou o outro a facão, depois de beberem juntos, por motivo da cobrança de uma dívida ínfima; o caso do marido que matou a mulher, em uma festa de São João, depois de muitas doses de licor, pelo fato de ter a mesma dançado forró com um antigo namorado; o caso do padrasto que bebia e abusava sexualmente da enteada; o caso do rapaz, completamente embriagado, que matou um gay que lhe passou a mão na bunda; o caso do rapaz, também completamente embriagado, que matou o que lhe chamou de “viado” e também o que matou, nas mesmas circunstâncias, o que lhe chamou de corno…
Aparentemente, apenas aparentemente, portanto, todos esses crimes estariam relacionados ao álcool e outras drogas. Nesta compreensão, os furtos e roubos tinham como causa motivadora as drogas ilícitas e os homicídios tinham o álcool como causa motivadora, ou seja, as pessoas furtavam, roubavam e matavam porque usavam álcool e outras drogas. Logo, nesta lógica rasteira, consequentemente, seria possível vivermos em uma sociedade sem crimes se as pessoas não usassem drogas, sejam lícitas ou ilícitas.
Esta lógica, aparentemente incontestável, no entanto, depois de tantas condenações, reincidências, novas e mais condenações, terminou me encaminhando também a um aparente paradoxo: como é impossível pensar um mundo sem as drogas – a causa de todos os males? – sempre haverá crimes. O paradoxo é aparente, pois nem todas as pessoas que se drogam, sejam por drogas lícitas ou ilícitas, cometem crimes e mesmo pessoas que não se drogam de nenhuma forma também cometem crimes. Logo, crimes se relacionam com a vida e, portanto, enquanto houver homens haverá crimes. Dito de outra forma, crimes não tem as drogas como causa, mas a própria vida. Assim, enquanto houver vida, haverá crimes.
Sendo assim, portanto, por trás de cada crime haverá sempre pessoas e suas histórias. Antes do crime, por consequência, existe a vida e suas tragédias. Haverá, assim, um nascimento, uma família, uma infância, uma adolescência, parentes, amigos, inimigos, vitórias, derrotas, sonhos, pesadelos, oportunidades agarradas e perdidas, desigualdade social, virtudes, defeitos, experiências, vícios, abstemia, mortes, amor, saudades, depressão…
Aos poucos fui aprendendo, tendo a vida e a injustiça social como professores, que a vida e as tragédias pessoais precedem as leis e o Direito e que a justiça, baseada apenas nas leis, não tem a menor possibilidade de julgar as tragédias humanas e problemas sociais e, muito menos, reparar as marcas deixadas pelos crimes. A pena de morte, prisão perpétua ou indenização em dinheiro não reparam a dor pela morte de uma pessoa e quem matou outra pessoa jamais se livrará da condição de assassino, mesmo após o cumprimento de uma pena privativa de liberdade por muitos anos.
Absurdamente, por fim, não se cometem crimes e nem se matam por causa do álcool e outras drogas, mas por causa da vida e suas tragédias. Drogar-se, portanto, é um ato de quem é vivo e é por causa da vida que se mata e morre. O jovem pobre, negro, sem escolaridade e formação profissional, excluído e periférico não furta e rouba porque se tornou dependente do crack, mas porque usar crack, furtar e roubar são consequências de sua história de vida. Da mesma forma, quem mata depois de se embriagar não mata porque está bêbado, mas porque a vida lhe transformou em bêbado e o torpor da embriaguez fez aflorar o sentimento descontrolado que a civilização pensou que até então estaria sob controle.
O Direito, por fim, não pode ter a pretensão de julgar crimes como se eles não fossem parte da vida de quem os comete e que um julgamento por parte de um juiz de direito teria a força de restabelecer vidas e relações humanas através de uma pena privativa de liberdade. Da mesma forma, o Direito não pode ser o álibi para que juízes violem garantias fundamentais em nome de uma justiça que cada vez mais se envergonha dos que usam seu nome em vão.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)