O rapaz bateu no vidro da janela e a colega que ia ao meu lado reagiu de pronto:
– Não abra, aqui é perigoso!
E é mesmo. Na sinaleira defronte do Parque da Cidade, ainda mais no início da noite é perigo certo. Todo dia os meninos dão pedrada nos vidros dos carros e roubam ou assaltam na maior cara de pau. Já é certeiro e não tem polícia – quando tem – que dê jeito.
Mas abri e ele então me pediu uma grana que era para ajudar a mãe que estava doente.
Como eu estava duro, disse que estava duro e então começou o diálogo de malucos.
Ele: – Doutor, eu podia estar roubando, assaltando ou matando.
Eu: – Podia também estar morto.
Ele: – Como!
Eu: – Morto! Você sabe que bandido na Bahia tem vida curta, desde os tempos que o delegado Laranjeira jogava duro e a ordem do governador era “deitar”. Isso era um código igual a atirar primeiro e perguntar depois. Bandido não se criava.
Ele: Poxa!
Eu: – E você sabe que basta ser preto para que a polícia prenda e arrebente e não tem esse negócio de direitos humanos e se você não sabe o Brasil todo dia é denunciado na ONU e em tudo que é país, mas não toma jeito e denúncia não tira porrada dada, né mesmo?
Ele: Isso é!
Eu: – E você sabe que existe uma filosofia dentro da própria polícia que branco correndo ganha medalha de ouro e preto correndo leva chumbo.
Completei: – Os próprios PMs que são na absoluta maioria negros, vindos de uma classe social mais baixa, não respeitam os negros. Certa vez presenciei na avenida Contorno um policial dando cacetada num rapaz e dizendo que preto tinha mais que levar no lombo e o interessante é que o soldado era mais preto que o assaltante. Como sou preto, pardo, mameluco e cor de formiga de açúcar fui saindo de fininho.
Então virei para minha amiga que estava boquiaberta com o diálogo e confabulei: – Você já viu que soldado da PM geralmente é negro ou descendente de negro e que na Polícia Civil o pessoal é mais branquinho? Só conheço duas ou três delegadas negras e uns dois delegados negros.
Todo o diálogo foi como um flash. Foi tudo tão rápido e só então me dei conta que o sinal abriu, uns motoristas buzinavam e o rapaz me olhava sem entender nada. Peguei a única moeda de cinquenta centavos que estava no porta-moedas e dei para ele.
– Doutor, que merreca. Não dá nem pra pegar o buzu – me disse.
– E eu que agora fiquei sem nada – retruquei, encerrando a conversa e pisando no acelerador antes que os motoristas neuróticos atrás de mim me comessem vivo.
Ainda deu para ouvir ele me aconselhando aos gritos: – Doutor não pare nunca aqui que só tem assaltante!