O leitor comentou em um de meus últimos textos e defendeu a tese ultrapassada de que “bandido bom é bandido morto”, sob argumento de que não é fácil sair para trabalhar e encontrar a casa arrombada por um bandido impiedoso.
Não creio que tenha mais o que ser dito e explicado de que não há mais lugar, na quadra da história em que vive a humanidade, para este tipo de atitude. O aprofundamento de conceitos acerca do humanismo, cidadania, igualdade, solidariedade, garantias individuais etc, sem dúvida, afastam definitivamente esta tese da ordem jurídica estabelecida pelo Estado Democrático de Direito.
Além disso, a proposta, quando defendida por quem se proclama cidadão de bem, pagador de impostos, respeitador das leis, cumpridor de suas obrigações, zeloso com sua religião que tem a vida como bem maior a ser preservado, norteando, inclusive, sua posição radical contra o aborto etc, encerra duas contradições insuperáveis: (i) um cidadão de bem não pode defender a morte de uma pessoa pelo descumprimento da lei e (ii) um homem religioso não pode fazer o mesmo, pois integrante de uma crença que tem a vida como bem maior a ser preservado.
Assim, neste debate dicotômico representado pelo bandido mau a ser morto pelo homem bom e quem vai lhe matar por conta de suas maldades, considerando que o argumento racional não consegue convencer os que não estão dispostos a ouvir, resta a interlocução movida pela emoção e chamamento ao sentimento, ao olhar-se e encontrar-se no mundo. Assim, se meu leitor continua defendendo que “bandido bom é bandido morto” resta-me lhe dizer que este seu sentimento me apavora e não sei se me assusta mais o comportamento do “bandido” que arromba uma residência e leva objetos que serão vendidos a qualquer preço para satisfazer sua dependência química ou de quem, do conforto de sua poltrona, digitando em um computador, tablet ou smartfone, simplesmente deseja a morte de outra pessoa que lhe arrombou a porta e lhe levou seus valiosos apetrechos tecnológicos.
Por fim, nesta lógica macabra e vencidos todos os argumentos contrários, é chegada a hora de matar o bandido, definir como será sua execução e quem será seu carrasco. Ora, o Estado não pode fazer isso, pois nosso ordenamento não prevê a pena de morte; pela mesma razão, autoridades civis e militares e seus prepostos também não podem… Sendo assim, por exclusão, não concordando a vítima com a execução do “bandido”, a tarefa seria entregue, por consequência, aos corajosos e heroicos defensores da medida extrema.
E aí, já escolheu como pretende matar seu bandido hoje? Já escolheu as armas? Usará meios mais sofisticados? Injeção letal? Cadeira elétrica? Fuzilamento? Enforcamento…? Finalmente, depois da execução, estando comprovadamente morto seu bandido, como você não concorda com os métodos do Estado de Direito, também não precisa comunicar o fato à autoridade policial. Não esqueça, no entanto, de se confessar ao seu padre ou pastor, rogando-lhe a intercessão do perdão divino por ter violado o mandamento “não matarás”, sob pena de não alcançar a salvação eterna e não ir para o céu quando morrer, podendo fazer companhia aos que já estão no inferno, dentre os quais, talvez, o próprio bandido que executou, entoando sarcasticamente no coro dos bandidos mortos por justiceiros: “nós, que aqui estamos, por vós esperamos”![1]
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)
[1] “Nós que aqui estamos por vós esperamos” é um filme brasileiro de 1999, sob a direção de Marcelo Masagão. Um filme-memória sobre o século XX, a partir de recortes biográficos reais e ficcionais de pequenos e grandes personagens que viveram neste século. O filme retrata uma verdadeira volta ao mundo no seu contexto histórico, econômico e cultural. Banaliza a vida e a morte para nos fazer refletir sobre ela. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/ N%C3%B3s_que_Aqui_Estamos_por_ V%C3%B3s_Esperamos