Manoel Pereira de Souza e Maria do Carmo de Oliveira nasceram no mesmo dia (30 de abril de 1956) e vieram ao mundo com a ajuda da mesma parteira. Como casal, estão juntos há 23 anos. Outro período marcante desses 58 anos de vida é dividido pelos dois: o convívio com a intensa seca no município de Conceição do Coité, a 210 quilômetros de Salvador, no semiárido baiano.
Plantações de milho mortas na entrada da cidade sinalizam o cenário de perdas provocadas pelos longos períodos de estiagem. Sem chuvas suficientes para o abastecimento total dos reservatórios, desde 2004, os produtores da cidade contabilizam os prejuízos e tentam administrar as dificuldades que envolvem o convívio com a seca.
Maria detalha que a chegada dos anos 2000 marca o início de um período que ela denomina como “milênio da seca” na região. “O século passado foi bem melhor do que esse que entrou. [A última chuva capaz de encher todas aguadas e cisternas] tem uns 10 anos, quando papai faleceu. Foi em 2004. Os riachos queriam levar até a gente. De lá para cá, ficou difícil”, lembrou.
Para o casal, o verão parece ser a única estação do ano. “No inverno, caíram umas chuvas bem fininhas. Não adiantaram”, destaca Manoel. Com as garoas do período, a vegetação superficial vingou produzindo uma sensação visual de prosperidade do solo, só que para os leigos. Conhecido como “seca verde”, o fenômeno não mais ilude os produtores.
De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Sintraf) do município, 80% da safra de inverno deste ano foi perdida e 70% das represas, cisternas, açudes, tanques e barreiros estão secos. A prefeitura local atesta os números e alerta que praticamente todos os mananciais estão operando abaixo do nível na região. Por conta da situação, o município integra a lista de 169 das 471 cidades baianas que estão situação de emergência devido a estiagem.
Na comunidade de Cansanção, onde vivem cerca de 70 famílias do município, Manoel pouco lucrou ou consumiu da última colheita, em setembro. O trabalho pesado da roça rendeu apenas no aproveitamento de 20% de tudo o que foi plantado. De 20 sacas de feijão esperadas, apenas uma vingou.
As raspas da mandioca colhida serviram apenas para alimentar os animais, já que o pouco obtido não tinha qualidade de comercialização. “É uma história de convivência com a seca. Há um bom tempo, o que se planta não se colhe. Esse feijão aqui [espalhado no chão do quintal] foi comprado”, evidencia o produtor a crise vivida, inclusive, na colheita para consumo próprio.
Foi neste cenário que os produtores rurais criaram dois filhos e, mesmo diante de severas restrições, ofertaram a ambos a oportunidade de formação escolar.
“Todo dia me lembro da dificuldade para manter na escola. Eles ajudavam nos trabalhos [no campo], mas não deixamos que isso atrapalhasse nos estudos”, ressalta Maria do Carmo. Com o filho mais velho morando em Salvador e a mais nova, de 20 anos, estudando geografia na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), ela destaca com orgulho as conquistas obtidas diante da forte restrição econômica imposta pela seca. “Nós ficamos sem as coisas para mantê-la [na universidade]“, diz a mãe.
Com 80% das plantações perdidas, além da fragilidade de saúde causada pela policitemia, doença caracterizada pelo excesso de células vermelhas no sangue, Manoel explica que os programas sociais, como as bolsas estiagem e família, são socorros providenciais durante os períodos de pouca chuva.
“É o que tem ajudado. Nessa geração, tem que ter paciência pra viver no semiárido”, admite. Com duas cisternas abastecidas com menos da metade da capacidade, o casal aguarda com ansiedade a possibilidade da “trovoada de novembro”, que é uma chuva capaz de fazer transbordar os reservatórios. As expectativas são mantidas, mesmo diante da imprevisibilidade meteorológica.
Administrar a pouca água é um desafio diário. “É fazendo economia. Não desperdiçando. Não jogando de qualquer forma, mas limpando mais com o pano. Também deixamos de molhar o que não está produzindo”, conta Maria do Carmo. Fora isso, Manoel Pereira destaca a existência do compartilhamento de água com os moradores que, devido à estiagem, veem as cisternas secarem.
“Um tem que ajudar o outro. Não tem como negar água, né? Sem água não há vida”, atesta. Mesmo com as dificuldades, o casal de produtores rurais nunca pensou em deixar o município. “Pra falar a verdade, eu não penso. Apesar dos pesares, até o momento não passou pela minha cabeça”, ressalta Maria do Carmo.
Assim como atestado por Manoel e a esposa, o Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Sintraf) do município afirma que as tecnologias de convívio com seca são fundamentais nos períodos de estiagem. Conforme o técnico de agropecuária Urias Rios de Oliveira, que atua no Movimento de Organização Comunitária (MOC), ONG que presta auxílio aos produtores rurais, além das cisternas ofertadas por meio de programas federais, os moradores da região receberam auxílio na construção de canteiros econômicos propícios para a plantação de verduras e hortaliças, que favorecem a manutenção da agricultura de subsistência. “Quem não tem essas tecnologias não tem como produzir”, afirma Urias.
Êxodo Rural Nas proximidades do distrito de Cansanção, no município de Conceição do Coité, onde moram Maria e Manoel, os produtores rurais do quilombo “Maracujá” também enfrentam dificuldades relacionadas aos longos períodos de estiagem. De acordo com o presidente da associação de moradores da comunidade, Hélio Oliveira, de 26 anos, mesmo com as tecnologias que permitem o convívio com a seca, os prejuízos aos produtores são inevitáveis. “Viver aqui é muito difícil. Quando chega um período desse, então. A minha família perdeu a plantação de milho e feijão completamente. Aqui todo mundo perdeu”, destaca Hélio.
Segundo o produtor rural, que mora com pais e irmãos, a família perdeu toda a produção na safra de inverno. Das sete sacas de feijão e 15 de milho esperadas, nenhuma rendeu. Neste cenário de perdas, Hélio explica que a saída para a maioria dos trabalhadores são os programas sociais e o trabalho em funções distantes do campo. “Às vezes, a saída é trabalhar fora. Em Coité [na sede do município], em Salvador. Tem muita gente que vai para São Paulo também. Se for ver bem, talvez, tem mais gente daqui em são Paulo do que os que são daqui e residem aqui. Quem está lá, ajuda quem está aqui. Se não for assim, fica difícil”, argumenta.
No contexto local, Hélio explica que o abastecimento das cisternas com carros-pipa é um serviço indispensável. “Agora, tá um pouco complicado, porque não tem como colocar [água por meio dos carros-pipa] em cada casa. Então, coloca em um ponto e as pessoas vão pegar naquele ponto para atender a comunidade inteira”, explicou. Conforme a prefeitura local, desde o início do ano, não houve paradas de abastecimento de carros-pipa na zona rural. A grande demanda, entretanto, tem atrasado alguns atendimentos. A cota é de 25 veículos por dia, e o serviço custou ao município R$ 252 mil entre janeiro e julho.
Foi o que aconteceu com Vilma Ferreira dos Santos, de 36 anos, que também reside no quilombo “Maracujá”. O G1 acompanhou a chegada de um carro-pipa na residência onde a dona de casa mora com a família. “Estou com a cisterna seca já há um mês e tanto. Aqui, as pessoas ainda têm um pouquinho da água das chuvas nas cisternas. Só que a minha estava meio suja, lavei, aí ficou sem. Pedimos na prefeitura, aí conseguimos. [Pedi] tem mais de um mês, mas é porque está abastecendo muitos lugares também e estão priorizando as casas que têm pessoas deficientes. Aí, demorou um pouco”, detalhou.
Por causa dos prolongados períodos de estiagem, Vilma explica que a família quase não produz mais alimentos. “Aqui chove, mas é sempre pouco. Aí não dá nada. Está tudo aí morrendo. Aqui perde sempre [plantações]. A gente nem planta mais. Aqui planto mais milho, ultimamente. Feijão mesmo não planto mais”, explicou.
Fécula do Paraná No Povoado de Onça, também na zonal rural de Conceição do Coité, a estiagem alterou a dinâmica de produção de beiju na residência de Teônia Lopes, de 50 anos. Devido a limitada oferta de mandioca na região, consequência da pouca chuva que cai na localidade, ela tem comprado fécula do estado do Paraná. “A gente compra e mistura com a nossa”, detalha.
Apesar da estiagem, Teônia afirma que as pequenas garoas do inverno possibilitaram o desenvolvimento da “tarefa de mandioca” plantada nos terrenos da família, que corresponde a 0,43 hectare. “Em 2011, não teve. Em 2012, também não. Em 2013, a gente conseguiu colher um pouco”, disse. O medo em casa é que a seca vivida volte e a esperada trovoada de novembro, que é capaz de transbordar as cisternas e aguadas na região, não ocorra. “Se chover, a gente ganha tudo [da atual plantação de mandioca]. Se passar mais meses sem chover, a gente vai perder”, explica Genivaldo Pereira, de 50 anos, marido de Teônia.
Resistindo ao período de estiagem, Genivaldo mostra como o tempo seco afeta a qualidade da mandioca. “Tá vendo aqui? Essa raiz só tem uma mandioca. Às vezes, chega a ter oito”, detalha. De acordo com a secretária de Políticas Agrícola e Agrária do Sintraf, Hilda Mercês, o impacto da seca na produção tem afetado o comércio do município. “Chuva boa é aquela em enche os tanques e possibilita a produção de alimento nas roças. Infelizmente, há tempo essa chuva não cai na região e as plantações não têm prosperado. Isso tem alterado o movimento na feira, que tem diminuído”, relatou.
Crise do Sisal A 26 quilômetros de Conceição do Coité, os moradores do município de Valente, que têm como fonte principal de economia a produção de sisal, também aguardam com ansiedade a “trovoada de novembro”. O sisal é uma planta mais resistente ao clima seco e usada pela indústria de cordas e tapetes pela sua dureza.
Após ter enfrentado um período de três anos praticamente sem chuvas (2010-2013), que levou a região a enfrentar uma crise de abastecimento, o medo da população é que os efeitos da estiagem sejam agravados. “Ainda vivemos o reflexo da última seca. Agora, está recomeçando tudo. Em 2014, houve umas chuvas no início do ano e no inverno choveu pouco. Todo mundo está traumatizado e já está com medo”, destaca Gerlândio Oliveira, gerente administrativo da Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira (Apaeb).
Moradora da comunidade de Barriguda, Nilza Lima, de 53 anos, mostra que o terreno onde trabalha já enfrenta problemas com a estiagem. “Tem muito sisal morrendo. Ele não está resistindo a falta de chuvas”, comentou. Acompanhado de Gerlândio Oliveira, o G1 visitou a localidade e atestou a mortandade da espécie na localidade. “O sisal está bem falhado e com grandes espaçamentos. Aqui, 60% já deve ter morrido”, alertou.
Além da seca, a plantação do local está enfrentando uma praga conhecida como “Podridão Vermelha”, doença causada por um fungo. “Quando você está imunologicamente frágil, não fica mais suscetível a doenças? O mesmo ocorre com o sisal. Frágil por conta da falta de chuvas, a plantação foi atingida por essa praga”, considerou.
Segundo Gerlândio Oliveira, a produção de sisal no município já chegou a ser de 500 toneladas por mês na década de 90. Hoje, ele detalha que a produção não chega a 100 toneladas. “Estamos no aguardo da trovoada de novembro. No ano passado, essa chuva amenizou os prejuízos. Nosso medo é que a seca volte com tudo outra vez. Convivemos ano a ano com essa preocupação”, concluiu.
Redação: CN*Informação: G1