Os personagens dessa história, ou melhor, desse capítulo de nossa história, chamam-se Luciana Tambuniri e João Carlos de Souza Corrêa. A trama se desenvolveu em três atos: uma blitz de trânsito; uma ação indenizatória em primeira Instância; e, o último, o julgamento de uma Apelação perante o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Como o fato já foi fartamente noticiado, despiciendo (menino! Como eu sei falar bonito!), contar aqui tudo de novo.
Por trás ou por dentro do ocorrido está muito além de uma agente pública no exercício de suas atribuições e outro agente público no abuso da suposta autoridade que tal condição lhe confere. Advirto logo que não foi por amarelice que não citei a figura de um juiz, preferindo a expressão agente público. É que o caso não comporta reducionismo.
Como no episódio tem um “home” de toga, o fato não deixa de despertar sentimentos que vão para além da indignação com mais uma carteirada. O chavão “você sabe com quem está falando?” é o filho dileto da relação desproporcional entre o Estado e a Cidadania, na qual aqueles que momentaneamente estão investidos de funções públicas se esquecem da transitoriedade de suas prerrogativas, que, no mais das vezes, confundem com o poder, o qual, em verdade, lhes foi delegado pelo cidadão , a quem efetivamente pertence.
A decisão judicial condenando a Agente de Trânsito a indenizar o Juiz por danos morais é absolutamente nefasta. E o seu desserviço a civilização vai muito além do seu espírito de corpo, posto que na sua inversão de valores, traz um forte conteúdo ideológico de prevalência do autoritarismo do agente em detrimento da autoridade da lei. Atento a esta distorção e quanto aos seus desdobramentos no quotidiano das pessoas comuns, o Sr. Pedro Aleixo, Vice-Presidente de Costa e Silva, quando da edição do AI5, disse que, diante do regime de exceção a ser instaurado, não temia o Presidente da República, mas o guarda de trânsito.
Vencemos inúmeros períodos autoritários, mas ainda não nos desprendemos dos seus resquícios. Assim, de forma consciente ou não, legalidade e justiça são conceitos que se associam segundo juízos de conveniência. Quem de nós nunca ouviu dizer que, para os inimigos, a lei e para os amigos, a jurisprudência?
Pois, é no caldo dessa cultura que muita gente boa (boa dormindo), quando se vê em situação de confronto, não hesita em lançar mão da parcela do poder real de que dispõe. É por isto que lá encima, em lugar de focar em um juiz, optei pelo gênero agente público. É que todos nós, indistintamente, somos tentados a uma carteirada. E o fazemos porque, quando a justiça mora no nosso interesse, esta tal legalidade é uma mera vizinha.
Vem-me a memória o caso do Califa Alrum Al-Rachid, o qual pretendia construir um suntuoso palácio. Para tanto, contratou os melhores arquitetos e decoradores e adquiriu os mais belos e ricos mármores, tapetes, vitrais e móveis. Porém, seus ministros lhe informaram de um obstáculo. Tratava-se de uma velha e feia choupana na área onde seria edificado o palácio. O Califa então lhes autorizou a comprar aquela choupana para demoli-la. Ocorre que o seu proprietário recusou a venda.
Como soe acontecer, os ministros sugeriram ao Califa demolir aquela choupana. Ele então rechaçou a proposta e lhes disse que o palácio serviria para a posteridade saber quanto ele fora rico e a choupana o quanto ele fora justo, respeitando o direito dos outros. Portanto, sempre que me perguntam se eu sei com quem estou falando, respondo: sim, apenas com uma das faces de Alrum Al-Rachid.
MARIO LIMA
ADVOGADO E PROCURADOR DO ESTADO DA BAHIA