O carnaval de Salvador, exibido por algumas emissoras de TV, é um conto de fadas. Porque as câmeras somente alcançam o camarote, onde estão posicionadas, e os blocos que fazem um cortejo elitista em torno dos trios elétricos. A pipoca – grupo de foliões posicionados entre os blocos e os tapumes dos camarotes – tem seu espaço cada vez mais dirimido no contexto da festa. Cabe dizer aos leitores que a pipoca ou os foliões populares foram os verdadeiros criadores do carnaval, uma festa originada pela mistura de classes, pela difusão da cultura baiana, pelo amor dos baianos à alegria e, sobretudo à música. Este contexto não existe atualmente porque o carnaval se tornou uma festa das elites ou de quem tem dinheiro para gastar nos camarotes e no desfile dos camisados.
A administração pública da cidade de Salvador, através dos seus prefeitos, transformou uma festa popular em negócio; esta característica incoercível do sistema capitalista – que converte absolutamente tudo em dinheiro ou investimento – foi aplicada ao carnaval com o intuito de gerar receitas, postos de empregos, visitas turísticas, crescimento do comércio, enfim. Naturalmente estes valores são necessários para qualquer cidade, especialmente Salvador. O que se contesta aqui é a evolução gradual do elitismo, da valorização do poder, da submissão de classes inferiores a um espaço reduzido no carnaval que é uma festa do povo. Existem pessoas que não podem pagar um “abadá” (camisa que garante a entrada no bloco) ou a entrada num camarote. Estas pessoas podem curtir o carnaval, desde que posicionadas numa minúscula e invisível faixa do circuito.
Não faz muito tempo os cantores nos trios saudavam a pipoca com reverência digna a quem de fato fazia o carnaval. Os pipoqueiros seguiam num cortejo massivo atrás do trio, dividindo proporcionalmente o espaço com os blocos. Camarotes sempre foram a essência do separatismo, uma vez que eles eram inicialmente reservados às autoridades e suas famílias. Com o tempo, os blocos engrossaram – devido também a uma melhoria de vida do brasileiro – e os camarotes passaram a marcar o roteiro do carnaval, em suas laterais, de ponta a ponta. Em 2012 alguns cantores, mobilizados com a supressão da pipoca, pediram ao prefeito para desfilar sem bloco. Na verdade este é um luxo reservado a bandas ou cantores consagrados no carnaval, uma vez que os blocos e camarotes geram receitas também para eles.
O turista que visita a cidade talvez não perceba estes aspectos, mas eles acontecem todos os dias durante festa. O folião de camarote somente consegue ver o panorama de onde está; assim como o ocupante dos blocos não enxerga cores diferentes, além daquelas que prevalecem no seu círculo. Posso falar de cátedra porque já tive a oportunidade de ver o carnaval de Salvador destas três perspectivas. Basta parar um minuto para pensar no sistema produzido por este separatismo social e econômico. Um sistema que evolui ano após ano, caracterizando uma diferenciação do público a partir de sua classe e de suas posses. Naturalmente esta análise tem a intenção de demonstrar o quanto elitista ainda é nossa essência, porque não gostamos de dividir nem mesmo o espaço.
O carnaval de Salvador é fruto da indústria cultural e não conserva, senão no nome, nenhuma qualidade essencial resguardada de sua origem. A propósito, o carnaval perde suas qualidades de festa popular, porque não é, de longe, uma representação castíssima do respeito do baiano ao espaço como foi há algumas décadas. Isso não significa que devamos odiar o carnaval, boicotá-lo ou penalizar que frequenta camarotes ou desfila em blocos. Independente da ação das pessoas, existe um processo em curso que visa capitalizar o carnaval ainda mais nos próximos anos. O futuro talvez seja um trio elétrico seguido por blocos e observado por camarotes; a pipoca não vai mais existir porque seu espaço é reduzido todos os anos. Continuará sendo uma festa agradável? Evidente que sim. Mas não será nada parecido com o que se entendia por carnaval.
*Mailson Ramos é Relações Públicas e escritor.