Existem homens que passam pela vida sem deixar rastro algum; nem mesmo rastros abstratos. A estes o próprio destino se encarrega de ocultar no curso da história. Por outro lado, a vida perivilegia a existência de homens que mesmo sem querer se estabelecem no imaginário de outras pessoas. Existem marcas simbólicas deixadas por alguns homens que nem mesmo o destino pode apagar. A morte, que para nós é um mistério inexplicável, jamais pode apagar a imortal personalidade de alguns homens. Porque os erros e os acertos são tão típicos do ser humano que cada um deve entender a vida como trajetória tortuosa, nunca como um ponto reto entre o nascimento e a morte. Viver a vida com todas estas nuances, traços e roteiros incertos dignifica a melhor das missões que é fazer história.
Há um ano e 17 dias meu pai partiu. Deixava para trás uma história consolidada e outras mais para viver. É este o paralelo inconfundível da saudade. É um sentimento que vai além da compreensão, mas, ao mesmo tempo serve para satisfazer nossa curiosidade sobre a existência de Deus: o ser humano não seria tão especial se não pudesse sentir estas coisas. Perdi com meu pai as histórias engraçadas, as grandes pessoas que somente ele conheceu, os diários particulares do trabalho, os amigos, os fatos históricos. Aquela seria a perda da qual eu jamais poderia me recuperar. O vazio sempre permanece, amargo, intenso, latente, amainado apenas com a felicidade das recordações e – na referência ao parágrafo anterior – pela salvaguarda da história.
Preferi ignorar as marcas, não pensar muito, sentir saudade em silêncio. Não consegui analisar profundamente o que esta falta representa. Nego compreender a razão da dor. Nego até que sinto dor. Mas no fundo, na verdade da alma, construi a presença abstrata do meu pai como motivo para alcançar novas vitórias. Conclui que não deveria alardear os valores ou erguer um estandarte em nome do meu sofrimento, mas a cada conquista deveria sim mostrar quem foi o condutor do meu sucesso. Nos dias chuvosos ou nos dias calorentos, nas noites silenciosas ou nas festas animadas, no interlúdio entre o sofrimento e a felicidade, é com a presença do meu pai que devo contar. Nada deve nos separar. E as tantas vezes que o vi partir, com uma mochila nas costas, enfrentando o mundo feroz, sabia que partia para fazer amizades, mesmo deixando entrecortada, em tempo e espaço, a nossa amizade.
Não sei se é necessário a um pai dizer que sente muito orgulho de um filho. Às vezes os gestos são muito mais representativos do que as palavras. Mas, não sei se por razão de algum erro do passado ou de algum ajuste de contas interior, meu pai disse que eu ‘havia chegado onde ele jamais imaginou e por isso sentia muito orgulho’. Aos amigo ele não escondia este sentimento, muito pelo contrário: explorava de cada palavra o sabor de sua vitória. Porque as minhas conquistas e as conquistas de minhas irmãs sempre foram a razão do seu contentamento. Devo dizer que uma família, ainda que separada em partes, pode ser sim uma família exemplar, cujos filhos respeitam pai e mãe. Não via nos olhos do meu pai uma vontade de retornar ao interior e abandonar a capital. Trabalhou em Salvador, como carpinteiro, a vida inteira e tinha um apego sincero ao ritmo frenético desta cidade. Quis Deus que descansasse em paz, rodeado por sua esposa e filhas. Eu ouviria, por telefone, a notícia mais aterradora para um filho.
A vida oferece várias possibilidades de evoluir. Talvez o nosso mundo dê mais atenção às evoluções do materialismo, das riquezas, do que das evoluções sentimentais e internas do ser humano. Foi observando estas conclusões que entendi a razão da humildade do meu pai quando apontava os edifícios onde havia trabalhado. Ora, ele nunca tinha subido em nenhum deles após a finalização da obra. Não sabia o que funcionava ali dentro, jamais poderia ser reconhecido por ter derramado o seu suor. Gostava do que fazia. Gostava de ser elogiado pelos patrões. E jamais se esqueceria de apontar o dedo, com saudosismo, para os prédios onde tinha trabalhado. Não o fazia senão por saudade. Ou para arrancar um elogio muito mais que merecido. Aquele era o momento das recordações que jamais saíam de sua cabeça. Ele não as podia demover porque faziam parte de sua construção histórica. Posso dizer até que meu pai foi um homem histórico, com todas as variantes do termo.
Não sei por quanto tempo ainda vou sofrer com esta perda. Sozinho. Sem compartilhar. Um avesso do que impõe minha capacidade interativa no trabalho, nas redes, nos meus ofícios. A marcação da vida que define o fim de uma relação entre pai e filho é a morte. Mas nem mesmo a morte é capaz de determinar a existência de um amor póstumo. De um amor que reage à dimensão de tempo e espaço, intrasmutável, firme. Não foi aquela despedida sileciosa, aquele adeus inconsequente, o responsponsável pela nossa distância. Faz mal pensar que não vamos nos encontrar nunca mais para um abraço lacrimoso. Faz mal apagar da lembrança aquele olhar de despedida diante do filho que nunca mais iria ver. Faz mal não sorrir, quando ele sorri, do sucesso dos filhos. Mesmo distante.
In memoriam de Marcelo Pereira de Oliveira, pai de Mailson Ramos.