O golpe não é apenas um castelo de cartas frágil, desmoronando ao sabor do vento. É essencialmente um processo autofágico: os seus responsáveis estão se devorando em larga escala. Isso só comprova que os golpistas estavam apenas interessados em se apossar do poder e por ele brigar internamente com unhas e dentes.
A ascensão de Michel Temer ao poder representou a concretização de um ministério formado por homens brancos e de meia idade; a maioria deles implicados em investigações da Lava Jato ou em outros processos judiciais. Aquele bloco de senhores engravatados começaria a se desfazer não apenas com demissões de ministros, mas com escândalos absolutamente reprimíveis.
Sob a não liderança de um presidente fraco e complacente – ou ainda com a sua total anuência –, o ex-ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, obrigou o também ex-ministro da Cultura, Marcelo Calero, a tomar decisões institucionais para lhe favorecer pessoalmente. Calero pediria demissão a Temer e depois divulgaria na imprensa todo o lamaçal de ameaças de Geddel e a inépcia de Temer ao lidar com o assunto.
A autofagia do golpe não acontece, entretanto, apenas no poder Executivo. O Legislativo e o Judiciário estão em pé de guerra, protagonizando uma crise institucional marcada pelo enfrentamento entre a força-tarefa da Lava Jato e os parlamentares da Câmara e do Senado. Numa rasteira magistral – dessas que só se pode ver numa boa roda de capoeira – os deputados aprovaram o crime de abuso de autoridade para magistrados e membros do Ministério Público.
A emenda foi feita ao projeto das ‘10 Medidas Contra a Corrupção’, criadas pelo próprio Ministério Público Federal (MPF); os procuradores de Curitiba, encabeçados por Deltan Dallagnol, depositavam neste projeto o reforço às leis já existentes contra a corrupção. Os deputados, alegando que juízes e procuradores também cometem crimes e não estão acima da lei, ratificaram as suas decisões e enviaram o projeto para ser votado no Senado.
A reação da força-tarefa da Lava Jato foi repelir a decisão dos deputados e, em coletiva de imprensa, chantageá-los. Os membros do MP ameaçaram renunciar coletivamente à operação sediada em Curitiba se os senadores aprovarem o projeto tal como está. O Congresso Nacional, que não é dado a interferências externas, entrou em choque violento contra os procuradores tão logo tomou conhecimento da coletiva no Paraná.
Não custa lembrar que, para derrubar Dilma Rousseff, a força-tarefa da Lava Jato e os parlamentares de oposição ao então governo estiveram unidos de forma umbilical. Entre eles, a imprensa mediava fornecendo vazamentos simultâneos e seletivos. O depoimento “sigiloso” que se dava às 10h da manhã na sede da PF em Curitiba era repercutido às 4h da tarde em Brasília. Até bem pouco tempo, Deltan Dallagnol desfilava pelos corredores da Câmara cortejado por deputados e paparicado pela imprensa chapa branca.
Diante deste fato novo, o governo se coloca em maus lençóis. Já se ouviu panelaços e se organiza manifestações – de direita – contra o sucateamento da Lava Jato. A operação comandada por Sérgio Moro sofre os primeiros abalos concretos. Durante os governos petistas, Ministério Público e Polícia Federal tiveram autonomia para colocar atrás das grades até mesmo os mais importantes membros do governo. Agora, começam a entender o que dizia Romero Jucá sobre “estancar a sangria”.
Nos corredores de Brasília já se fala no golpe dentro do golpe: o PSDB, que até então apoia este governo, começou a estabelecer critérios e a direcionar as decisões da economia. Não à toa, o governo Temer tem a alma do governo FHC: minimizar o Estado, privatizar as estatais e promover uma política econômica neoliberal. Entretanto, os tucanos começam a visualizar a ineficácia de Michel Temer e as manifestações, sempre oportunas, que se organizam contra ele. Notadamente a grande mídia já o abandonou.
Num embate feroz, todos aqueles que agiram diretamente para colocar Michel Temer no poder começam a sentir as penalizações pela decisão. A história de que um novo governo melhoraria os índices da economia naufragou. O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, deu vida a PEC 55 que congelará investimentos em Saúde e Educação por longos 20 anos, um anacronismo. O desmonte atinge fundamentalmente as estatais: serão demitidos compulsoriamente 11 mil funcionários da Caixa Econômica Federal e 18 mil do Banco do Brasil.
Enquanto se destrói por dentro, o golpe desmonta o Estado em busca de minimizá-lo, tornando-o agradável para poucos e insuportável para uma massacrada maioria. Enquanto esta guerra política continua – ela que foi iniciada em nome do poder – a população sofre com o desemprego e o encolhimento da economia. Não custa lembrar que em 2015 os deputados, comandados por Eduardo Cunha, impediram votações importantes para o governo Dilma, o que definiram como pautas bombas.
Depois, o impeachment por Cunha autorizado colocou a República aos cacos. A ascensão dos golpistas ao poder não mudou em nada o panorama. E eles falam em herança maldita, em país quebrado, em dívida pública astronômica. Para depois falar em reforma trabalhista e da previdência. Eles só não falam em diminuir os seus próprios salários. E por estes salários eles seriam capazes de devorar uns aos outros.
Mailson Ramos é relações públicas e editor dos site Nossa Política e Portal Ecclesia.