A política do faz de conta criou uma Salvador dos sonhos para quem nela chega pela primeira vez: é uma cidade sem miseráveis, sem moradores de rua, sem pedintes escorados nas paredes das esquinas ou mergulhados sob um viaduto. É que aqui se aprendeu a esconder as mazelas sociais com panis et circensis.
Do pão que se come e do circo que se assiste não sobra nada para os menos favorecidos. Eles serão de novo escoltados para outros bairros para não mostrar que Salvador é uma cidade de desigualdades gritantes. Enquanto muitos vão gritar atrás do trio, embriagados pelos feitos de Momo, uma minoria exclusa vai gritar de fome nos passeios públicos.
Estigmatizados, os moradores de rua definham sem a pretensão de fazer parte da festa que um dia foi do povo. O povão, na verdade, continua excluído do carnaval de Salvador, este processo de elitização dos espaços públicos. Continua sendo uma festa para quem paga e uma decepção para quem busca um resquício de cultura popular. Mesmo porque até os tradicionais blocos de cultura africana cederam aos apelos do ‘quem paga mais’.
Salvador é o reflexo da política de maquiagem social que cura todas as feridas e mazelas da cidade com festa e praças bonitas. Durante o carnaval é possível que a integração não funcione, como também não funcionará os hospitais antes, durante e depois da festa de rua. Mas o soteropolitano curará todas as dores no convincente anúncio publicitário que apresenta todos os dias, em cores vivas, uma cidade encantadora.
A primeira capital do Brasil é uma cidade que exclui, mas que sabe condensar a gama de injustiças perpetradas contra os mais fracos, transformando obrigação administrativa em favor. A cidade do litoral bonito continua impávida, colossal, com os seus paredões assentados com mármore. Possivelmente o número de pedras na orla assentadas é o mesmo de pessoas que não recebem atendimento nos postos médicos de urgência.
E todo este processo conta com a mão da mídia, aqui mais corporativa e familiar do que em qualquer em outro lugar do país. As emissoras de TV que transmitem o carnaval de Salvador farão – como só elas sabem – parte deste teatro da hipocrisia: não vão mostrar o que existe para manter a imagem da ‘Salvador dos sonhos’. Serão assim todos os dias de carnaval: esconderão a violência, os assaltos, os erros de uma festa cada vez menos popular.
Vanitas vanitatum et omnia vanitas. A vaidade corrompe uma cidade que posa de brinco da princesa quando é reduto de desempregados, preserva uma desigualdade abismal e não respeita aqueles que a consideram a Roma Negra. Salvador precisa de um choque de realidade. Precisa se reconhecer como berço do abismo entre ricos e pobres, injusta, avessa ao cidadão. No dia em que isto acontecer, mesmo o carnaval deixará de ser uma festa para elitizados e voltará para a pipoca, os reais donos de uma folia que nasceu do povão.
Mailson Ramos é relações públicas e colunista do site Nossa Política.