Com o avanço do crime organizado país afora, o governo federal aposta no Sistema Único de Segurança Pública (Susp) para tentar reverter o clima de insegurança que atinge a população brasileira. O novo modelo, que passa a vigorar a partir de 11 de julho, coloca a União no comando das ações de segurança, integra os esforços dos governos federal, distrital, estaduais e municipais, além de disponibilizar recursos para o combate à violência. Os resultados não serão imediatos e devem ser percebidos a partir de 2019.
Depois de sancionada pelo presidente Michel Temer, a nova política de segurança pública ainda tem etapas a serem cumpridas e deverá passar por um período de transição. “Em 2018 vamos ter alguns avanços setoriais, vamos ter operações conjuntas, como a que fizemos recentemente com todas as polícias civis contra a pedofilia na internet. Tem muita coisa acontecendo, mas a percepção de fato da significação do Susp só vai se dar a partir de 2019″, disse o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, à Agência Brasil.
A base do sistema de segurança pública é a atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada da União, dos estados, do Distrito Federal (DF) e dos municípios, em articulação com a sociedade. Caberá ao recém-criado Ministério da Segurança Pública a formação do conselho nacional e a elaboração do plano nacional, que servirão de parâmetro para os estados, o DF e os municípios. “Como nosso tempo é curtíssimo, nos importa muito deixar um legado. Esse legado está construído em forma de lei e vai prevalecer, não vai desaparecer”, argumenta Jungmann.
Financiamento
Uma mudança fundamental está no financiamento da área. A União vai repassar recursos via Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O FNSP ganhou um reforço de verbas das loterias federais que, neste ano, será de aproximadamente R$ 800 milhões, mas a previsão é que em 2022 chegue a R$ 4,3 bilhões ao ano. O BNDES criou uma linha de R$ 42 bilhões para financiamento de segurança pública, destinada a estados e municípios.
A partir da nova legislação, governadores e prefeitos só terão acesso aos recursos federais se aderirem ao Susp e acertarem metas de redução das taxas de criminalidade, de formação e qualificação de policiais, além de abastecerem o banco de dados nacional sobre segurança.
Jungmann acredita que a adesão ao Susp será impulsionada pelo financiamento das ações de combate à violência. “Quem não aderir não receberá nenhum tipo de recurso. Ou seja, a regra para poder receber é participar do Susp. Aliás, qualquer governante que resolver não aderir vai ter que dar uma explicação muito clara à sua população por que não está integrando esse mutirão que reúne todos e todas no combate ao crime organizado.”
O Ministério da Segurança Pública trabalha com dados do Atlas da Violência, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para ter um diagnóstico da violência no país. A edição de 2018 mostra a escalada de crimes e seu deslocamento para municípios de médio porte. Com base no registro de mortalidade do Ministério da Saúde, o estudo revela que, pela primeira vez, o Brasil ultrapassou a marca de 30 homicídios por grupo de 100 mil habitantes – o que é 30 vezes o resultado da Europa.
A base de dados do Atlas da Violência é de 2016. Naquele ano, o Brasil registrou 62.517 homicídios. As maiores taxas estão em sete estados do Norte e Nordeste. O segundo volume do Atlas mostra que a metade das mortes violentas ocorreu em 123 municípios brasileiros, que representam 2,2% do total. Foram analisados dados de 309 municípios com mais de 100 mil habitantes. O grosso dos homicídios ocorre em cidades com população entre 100 mil e 200 mil habitantes.
Pesquisa recente do Ibope, encomendada pela Confederação Brasileira da Indústria (CNI), revela que a segurança pública, juntamente com desemprego, corrupção e saúde, está entre os principais problemas apontados pela população em 2016 e 2017. Retratos da Sociedade Brasileira, publicação da CNI, mostra ainda que, para os entrevistados, combater a violência, a criminalidade e as drogas deveria estar entre as prioridades dos governantes neste ano. Foram ouvidas 2 mil pessoas em dezembro passado, mas o estudo foi divulgado neste ano.
Experiência
O Susp foi planejado a partir da experiência brasileira nas áreas de saúde, educação, previdência e assistência, cujas iniciativas são coordenadas pelo governo federal em parceria com os estados, o Distrito Federal e os municípios. Também foram levados em consideração o diagnóstico do sistema de segurança brasileiro e os modelos adotados em países desenvolvidos, entre eles, os Estados Unidos, a Inglaterra e a França.
Historicamente, no Brasil, a segurança sempre foi responsabilidade dos estados, com participação residual da União e dos municípios. Esse modelo é reproduzido na Constituição de 1988, que dedica apenas o Artigo 144 à segurança pública. “É como se tivéssemos um time em campo, mas ele não tivesse técnico nem capitão. Temos uma espécie de federalismo sem cabeça na área da segurança pública”, avalia o ministro Jungmann. Ou seja, cada estado define sua estratégia, sem o direcionamento de uma política nacional de segurança pública.
Segundo Jungmann, nos últimos tempos, o crime organizado tem se expandido, domina o sistema penitenciário nacional, ultrapassa as divisas dos estados e até as fronteiras brasileiras, dificultando a atuação das forças de segurança. “O que pode fazer o governador de Rondônia quando o Nem [traficante Antônio Francisco Bonfim Lopes], lá de cima, dá uma ordem e abre uma guerra no Rio, a quase 5 mil quilômetros de distância? O que pode fazer o governador do Rio de Janeiro?”, questiona.
Para o ministro, esse tipo de conflito deixou evidente que o governo federal, assim como fez em outras áreas, teria que assumir com urgência a coordenação da segurança pública no país, a despeito de a Constituição atribuir essa tarefa aos estados e ao Distrito Federal. “Então fica claro que tem que haver uma autoridade central para dar rumo. E ter recursos. E ter instrumentos para poder fazer isso. Antes não existia nem sistema nem política nacional de segurança pública. Eram partes disjuntas. Na segurança, era uma federação sem rumo”, argumenta.
Caminho certo
A avaliação do diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, segue a mesma linha. Lima identificou cerca de 1.350 atores públicos de segurança no país, desde as guardas municipais, passando pelas polícias militares e civis, as secretarias estaduais, as Forças Armadas, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Judiciário, o Ministério Público até o governo federal, todos atuando sem uma coordenação. “Hoje não existe ninguém com a atribuição de coordenar as ações”, diz.
Para Lima, o Sistema Único de Segurança Pública está no caminho certo, mas a iniciativa ainda é tímida. “O Susp estabelece uma coordenação, integra as ações, mas não mexe nas atribuições do Poderes. É um passo importante, mas vai depender muito da força política e da capacidade de articulação do Ministério da Segurança Pública”, afirma.
Além das ações do Susp, o governo federal criou a Câmara Interministerial de Prevenção Social e Segurança, que reúne os ministérios da área social para propor ações preventivas voltadas para as localidades com os maiores índices de criminalidade e os grupos mais vulneráveis, entre eles homens entre 15 e 24 anos – principais vítimas de mortes violentas no país. “Não vamos criar nenhum programa novo. Vamos aproveitar os bons programas que temos. É só focar as ações nesse grupo social e nesse território [apontados no Atlas da Violência 2018]”, diz Jungmann.