O que é uma faca? Bem, um instrumento cortante, geralmente de aço, nada mais que isto. Tal como a folha de papel em branco de Khalil Gibran, pura é criada, mas diferentemente daquela, que foi ignorada pelo tinteiro e pelos lápis, não permanece pura e casta.
Quem fabrica a faca é apenas o seu fabricante e quem a vende é apenas o seu vendedor, nada mais que isto. Se ela vai para as mãos de um bom açougueiro, pode se esperar um bom churrasco. Mas se vai para as mãos de um psicopata, um crime é quase certo. Porém, a faca, seu fabricante e seu vendedor não têm a ver nem com a festa e nem com a tragédia.
Como todo e qualquer objeto inanimado, uma faca é empregada em rituais, como, por exemplo, o corte do bolo de aniversário ou de casamento. E cada ritual traz implícita uma lógica. Naquelas cerimônias a lógica é o do compartilhamento das alegrias. E assim a multifuncional faca segue participando involuntariamente de nossa vida social, ora tocada pelo sal ou pelo açúcar das festas, ora tocada pelo sangue derramado pela barbárie.
Mais recentemente uma faca interferiu em nossa sucessão presidencial. E outra participou dos confrontos que se seguiram após a votação. Ambas foram utilizadas por mãos encarnadas por algo mais profundo que a intolerância político-partidária: a crença de alguém na própria força como único e mais eficaz meio de sobrepor a sua vontade e os seus valores aos outros. É esta concepção que explica os assassinatos por motivos passionais, por divergências religiosas, por preferências esportivas, por homofobia e tantas outras causas banais.
Assistimos de há muito a banalização da vida. E isto é um tema muito sério e deve ser enfrentado por toda a sociedade. Se a ninguém é dado o direito a indiferença com a sua complexidade, menos ainda isto o é tolerável em quem tem liderança social. Com violência não se brinca. Mas não foi isto o que fez o Presidente eleito em um churrasco, quando apontou uma faca a um amigo, dizendo-lheque, atacado com uma daquele tamanho, o distinto cavalheiro poderia virar até “Presidente da ONU”. Pois é, ele fez chiste com aquilo que experimentara na pele.
Nossa sociedade está profundamente dividida. E não é apenas por questões eleitorais. Nada disto! Em tudo os ânimos se exaltam e o recurso a soluções violentas é recorrente. Ora, seria um exagero culpar o Sr. Bolsonaro por este estado de coisas, mas seria igualmente um despropósito negar que sua retórica histórica não legitima aqueles que pregam todas as formas de intolerância. Assim, se como homem público que de há muito o é, não lhe cabia, por exemplo, a defesa da tortura, agora como maior mandatário da Nação é que deles e espera mais temperança, tanto nas palavras como nos gestos.
Dirão alguns que estou fazendo tempestade em copo d’água, argumentando que não houve mais que uma piada (de gosto duvidoso, ponderariam os menos exaltados), mas apenas isto. Não cara pálida, aquilo não foi uma piada: foi um chiste (alô Freud).Há uma metáfora no gesto de exibir uma faca e dizer que, conforme o seu tamanho, pode-se alçar planos mais altos do poder, ainda que, como ele, na condição de vítima. Implicitamente admitiu o Presidente eleito que a sua vitória foi favorecida pelo clima de violência que se instalou no País. Por vias travessas, fizeram-se reverências ao argumento da força em detrimento a força dos argumentos. Ora, vindo de quem veio tal atitude não surpreende.
Que o Sr. Bolsonaro pense assim, está no seu direito. Porém, a sociedade que o elegeu não pode ver normalidade em apologias da violência (ainda que sob o manto da brincadeira), vindas do Presidente da República. É que o Chefe da Nação tem o dever de velar pelo atingimento dos objetivos de nossa Constituição e um desses objetivos é a construção de uma sociedade fraterna, em que haja respeito a todos os indivíduos. E tudo que o argumento da força não conhece é o respeito às individualidades. Aliás, quem nos disse isto foi Rousseau em seu Contrato Social, quando, a respeito do chamado direito do mais forte, escreveu que: “força é um poder físico: não vejo que moralidade pode derivar de seus efeitos. Ceder à força é um ato de necessidade, não de vontade.”.
Aos que não veem maiores repercussões no episódio aqui abordado, lembro-lhes a estória da soltura de um burro. Liberto, o animal adentrou em uma propriedade e destruiu toda a plantação. Foi morto pelo agricultor prejudicado e, por sucessivas vinganças, outras tantas mortes ocorreram. Indagado sobre suas responsabilidades, o dito que cortou a corda disse que nada fez, apenas desamarrou o burro.
MARIO LIMA
ADVOGADO E PROCURADOR DO ESTADO DA BAHIA