O agricultor Abelmanto Carneiro de Oliveira, 46 anos, ficou conhecido por conta de muita invenção e criatividade desenvolvidas em suas terras. Ele transformou seus pouco mais de 10 hectares em um amplo espaço de múltiplas maneiras de convivência com as adversidades do sertão baiano, a partir de um laboratório aberto a outros agricultores do semiárido brasileiro.Cerca de 16 quilômetros separam a propriedade do agricultor da cidade de Riachão do Jacuípe, na Bacia do Jacuípe, a 186 quilômetros de Salvador.
Apesar de sua propriedade ser pequena, Abelmanto desconsidera os limites de espaço e vai além, ao transformar suas experiências com desenvolvimento sustentável, cruzando práticas de educação ambiental, de campo e agroecologia. “A paisagem árida muda na proporção que avançamos. Uma nova paisagem vai surgindo, é como um oásis no meio da vegetação devastada pelas queimadas e derrubadas dos grandes latifúndios. E então,surge a propriedade verde do agricultor.
Fomos bem recepcionados numa manhã de domingo em que o sol brilhava alto e anunciava, segundo Abelmanto, pancadas de chuva à tarde, um olhar contemplativo de um bom observador do tempo e do espaço em que vive, foi logo anunciando que o vento estava soprando do Norte. Naquele instante, o agricultor já tinha feito a ordenha de seu pequeno rebanho de caprinos e bovinos, regado as plantas e ido até a área urbana da cidade, apresentar o Programa “Domingo Rural”, na rádio Jacuípe AM.
Para Abel, como é mais conhecido, o rádio é mais um canal importante entre ele e a sua comunidade.No programa, ele fortalece vínculos e socializa conhecimentos que vem aprendendo pelo Brasil. Através de cursos e intercâmbios que faz por meio de Ongs, movimentos sociais, universidades e outros setores rurais da sociedade civil organizada.
As participações dos ouvintes reforçam e movimentam as pautas do programa com perguntas sobre como combater formigas e pragas em plantas, técnicas de criações de animais, manejos do solo e temas como agroecologia, por exemplo. “Ouço todos os domingos, não arredo o pé do rádio enquanto Abel não dá o adeus final”, conta sorridente, a dona de casa Francisca Carneiro, 66, ouvinte assídua.
O apicultor
No meio da entrevista, fomos interrompidos: -Ele chegou! Avisou Jacira de Oliveira, 48, esposa de Abelmanto, se referindo à aguardada presença deGean Carlos Cordeiro, jovem de 33 anos, morador da comunidade de Mucambo, a quase 2 quilômetros da casa do agricultor.Gean foi aprender com Abel as práticas da apicultura. “Vocês gostariam de nos acompanhar”? Convida Abel, que precisava assumir mais um de seus compromissos com a comunidade. “É muito comum baterem à nossa porta em busca de apoio para os diversos tipos de lida no campo. Fazemos isso com prazer e cobramos apenas o custo da viagem, quando a propriedade é muito distante, em outras localidades”, explica Abel.
Vez ou outra, Abel intercala as dicas para o aprendiz Gean, com “causos” rápidos, rompendo o nosso silêncio, ao mesmo tempo, quebrando nossa tensão. Depois de colhido, o mel é transportado por dois carrinhos de mão e ainda dentro dos favos (capas). No centro de processamento dos produtos da agricultura familiar, em um espaço bastante higienizado, os favos são desencapados e colocados no centrifugador para tirar a primeira etapa do líquido, ou seja, o de maior qualidade.
Após essa etapa, há outras que produz o mel de menor qualidade evalor mais acessível. Além de também aproveitar a própolis, a cera é pesada e trocada por produtos como capas artificiais para usar nas próximas colmeias como divisões. “Aqui não perdemos nada, tudo é transformado, quando não é vendido, geralmente fazemos a troca solidária”, explica. Sobre este tipo de troca, Abel nos deu outro exemplo: “Estava sem tempo de produzir o queijo, então passei a trocar por leite com um produtor da comunidade, além do leite, agora não falta queijo em minha mesa. Agricultura familiar também é solidariedade”, avalia.
De volta à varanda da Casa do agricultor
Após um copo de água trazido por Maria Clara, 12 anos, única filha de Abel e Jacira, a conversa é reiniciada. Meios de comunicação já se tornaram comuns na rotina de Abel. “Na semana passada tivemos a visita da TVE para uma reportagem”, lembra. Considerado por Ongs, universidades, e movimentos comunitários organizados como um agricultor familiar que tem se destacado pelo protagonismo criativo em todo o semiárido nordestino, bastante modesto, Abel diz que é apenas um matuto que aprendeu a viver no próprio lugar.
“O que mais me alegra é saber que nossa tecnologia também melhora a vida de nossa comunidade”, desconversa. Sobre conviver com o semiárido o agricultor relata que tudo começa com a vontade de ser feliz onde nasceu, da paixão e afeto pelas raízes. No entanto, com o passar do tempo, ele percebeu outros sentimentos de afetividade. Viver bem no sertão, para ele, não é impossível e só com a mudança do olhar sobre o semiárido é que tudo muda e passa a ser viável.
Projeto de Educação Ambiental Vida do Solo-Desenvolvimento Sustentável
Foi observando a gradativa devastação das caatingas da região que Abel e sua comunidade criaram o Projeto de Educação Ambiental Vida do Solo pensando no reflorestamento e manutenção da caatinga. A propriedade possui um viveiro com 22 espécies de plantas nativas que estão quase em extinção, como a barriguda, mulungu, moringa, umburana, aroeira e outras a completarem o ciclo para serem replantadas.
A cerca de 2 quilômetros da propriedade dele há um exemplo prático. No sítio de Marcolino Pitanga, 55, uma experiência do sistema agroflorestal comprova a importância do Projeto Educação Ambiental Vida do Solo e do protagonismo de Abelmanto para a sua Comunidade. “Vocês querem saber quem é Abelmanto? Então, vamos em minha casa ver o que esse homem tem feito por mim e por nossa comunidade”, convoca Marcolino, demonstrando gratidão ao amigo.
O Projeto Vida do Solo além de desenvolver com a supervisão de Abel a Oleicultura, já plantou em pouco mais de duas tarefas, 14 mudas (adultas) de umbuzeiros associados à palmas e acerolas. Marcolino construiu um berçário de umbuzeiros, numa espécie de banco de mudas para replantar umbuzeiros em toda a sua propriedade. No berço, mais de 50 mudas esperam a fase adulta para serem replantadas em toda a propriedade. “Temos como finalidade aumentar os pés de umbuzeiros e crescer a nossa produção de polpa de umbu que já fazemos em parceria com o Projeto Vida do Solo”, explica Marcula.
Participam do Projeto 28 famílias das comunidades próximas de Mucambo e Sítio Novo. Cada uma recebe uma variedade de cursos e formações. Um dos cursos trabalha com educação contextualizada, direcionado para crianças em parceria com algumas escolas e com o Projeto CAT (Conhecer, Analisar e Transformar).
Uma vez por semana, elas entram em contato com temas sobre cidadania, preservação ambiental e desenvolvimento sustentável. Tudo isso em contato direto com a natureza. “Materiais como plástico, papelão, vidro e alumínio são recolhidos na comunidade e vendidos para uma cooperativa de reciclagem de Riachão. O dinheiro arrecadado ajuda a manter as ações na propriedade com lanche e almoço para as crianças, além de material de apoio para as atividades”, garante Abelmanto Carneiro, também coordenador do Projeto.
Atualmente as crianças estão de férias, mas no retorno, complementam o estudo escolar com a vivência no campo. Material reciclável vira bomba d’água, liquidificador manual, aquecedor de água e artesanato no próprio sítio. “Para nós, a maior importância é que ele nos incentiva a conhecer melhor nosso próprio espaço e a viver no campo feliz com a nossa realidade”, lembra Evilaine Cunha Reis, 14 anos, estudante e ex-estagiária do Projeto Vida do Solo.
Geração de Emprego e renda
O Projeto Vida do Solo é também responsável por articular um grupo de produção dentro da comunidade apoiando as iniciativas de produtores e produtoras rurais. Através da produção de polpas de frutas da região, como umbu, acerola, tamarindo, caju, cajá, manga e outras resistentes ao clima, eles participam de várias etapas do processo. Muitos escolhem apenas colher o fruto, ensacar e vender ao grupo de produção, mas há outros que participam do início ao fim do processo, sendo melhor remunerados por isso.
O empoderamento das mulheres da comunidade é visível. Em dias de visitas na propriedade, elas expõem seus produtos para venderem, cada uma ao seu modo. Os produtos vão de compotas de frutas, doces de cortes, geleias, à brincos, colares e bordados. A geração de maior renda é garantida nestes dias em que precisa-se mais de cozinheiras e outras atividades para atenderem as demandas dos visitantes.
“Abel é um homem de muitas invencionices” (Marcula Pitanga)
Uma das principais criações de Abelmanto é a bomba malhação, criada inicialmente, para irrigar hortaliças. Ao impulsionar com as mãos sob pressão, a bomba eleva água para os canos e irriga a plantação através de canetas que servem de hastes circulatórias jorrando água para o raio de toda a plantação. A bomba é fabricada, basicamente, com garrafas pets, canetas bics, e canos. Com o sucesso da bomba malhação que ganhou este nome por exercitar os membros superiores de quem a utiliza, o agricultor passou a receber diversas encomendas, inclusive da África, para onde enviou algumas. “Abel é um homem de muitas invencionices”, interfere o amigo Marcula, enquanto o agricultor apresenta a invenção para um grupo de estudantes.
Abel produz outros tipos de bombas manuais que jorram nutrientes para as plantas, construiu barragens criativas e até o sistema sanitário e de reaproveitamento de água de sua residência, inclusive aprovado pela especialista em saneamento básico rural do Instituto Federal Baiano, a doutoranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento, Maria Auxiliadora.
As notícias sobre as invenções do agricultor repercutiram bastante, chegando a grandes centros a partir da própria imprensa que o tornou ligeiramente conhecido no Brasil, e em especial, no semiárido nordestino. Por conta das inúmeras visitas, sua propriedade foi transformada em uma espécie de laboratório a céu aberto para estudantes, pesquisadores, agricultores, Ongs, cooperativas, universidades, e demais interessados nas técnicas criadas pelo agricultor. Sejam desenvolvidas e/ou adaptadas por ele.
Para o inventor Abel, na confecção de suas criações, o verbo principal é viabilizar, viabilizar tudo que facilite a vida do homem do semiárido. Atraídos pela fama da propriedade e suas inovações, pesquisadores de quase todos os estados do Brasil, e até de outros países confirmam com suas visitas as invenções criativas no próprio laboratório do agricultor. O espaço já recebeu pesquisadores da África, das Américas, como os Estados Unidos e também de países da Europa. Mas rotina mesmo em sua propriedade são as incontáveis comitivas de estudantes e pesquisadores do semiárido nordestino.
Equipe da Escola agrícola e da Cáritas Diocenana em Ruy de Ruy Barbosa visitando o centro
A exemplo do IF Baiano- Serrinha, que em parceria com o agricultor, leva turmas de Agroecologia, Agropecuária, Veterinária e outros que visitam o sítio para intercambiarem saberes com Abel. Para a professora e coordenadora do Núcleo de Estudos em Agroecologia, que ganhou em 2015 o nome de Abelmanto Carneiro de Oliveira, a propriedade do agricultor tem um protagonismo forte: “ tem uma ressignificação de convivência com o semiárido de extrema importância, porque a partir das experiências que ele desenvolve dentro do contexto do semiárido ele só fortalece a nossa identidade, desmistificando elementos que venham estereotipar a nossa região, especialmente o sertão e a caatinga”, opina.
Abel e sua relação com a água
No mínimo dois fatos curiosos marcam a relação desse sertanejo com a água. Primeiro a pouco mais de dois quilômetros de sua casa, a natureza exibe um açude com uma boa extensão de água doce. Segundo, este mesmo açude contrasta com a falta de água encanada pela rede da EMBASA- (Empresa Baiana de Água e Saneamento) nas residências de Abel e vizinhança.
Embora o açude esteja perto de sua residência, o custo para canalizar água da represa sairia caro demais. No caso da EMBASA, embora o ramal da rede passe perto também, Abel e seus vizinhos não entendem a demora para ação tão simples, mas aguardam pela vontade dos políticos.
Apesar destas condições, somadas à falta de chuvas regulares no semiárido, o agricultor desafia a própria realidade. Atualmente ele reserva em sua propriedade quase 7 milhões de litros de água. Barreiros trincheiras, cisternas calçadão, barragens subterrâneas, tanques e outras formas de reservas garantem água para consumo humano, animal e plantações o ano inteiro, em especial, em tempos de estiagem.
O agricultor reconhece a facilidade que os governos federais à época deram com a criação de Programas como o P1+2 em parcerias com movimentos sociais organizados como a ASA (Articulação com o Semiárido) para a aquisição destas cisternas e formações para ele e sua comunidade saberem reservar o líquido em tempos de chuvas. Sobre estas e outras políticas públicas dos governos anteriores, ele diz que as mesmas foram resultados, inicialmente, do protagonismo dado ao sertanejo.
“Foi um conjunto de fatores que em parceria com setores organizados da sociedade passaram a sinalizar as reais necessidades do homem do semiárido. Estas políticas públicas foram capazes de me fazer acreditar ainda mais que aqui é um lugar bom pra se viver, com criatividade, estocagem de água e alimentos”.
Segundo Abel tudo isso facilitou pra ele e agricultores de sua comunidade irem em busca de mais alternativas para fazerem de suas propriedades um ambiente melhor pra se viver. Como por exemplo, outras formas de prender a água da chuva que ele mesmo inventou.
Como fator a dar maior significância ao desenvolvimento regional e ao protagonismo de Abel, enquanto agente transformador de sua realidade e da realidade de sua comunidade, um recente e dado concreto foi a construção do Centro de Formação João Pitanga que serve principalmente, às comunidades mais próximas com formações sócio educativas, culturais e políticas.
Além disso, o Centro tem espaço adequado para o processamento dos produtos da Agricultura Familiar e alojamento com banheiros para os visitantes que desejam ficar mais dias na propriedade laboratório.
Abelmanto mesmo muito ocupado, está sempre com um largo sorriso no rosto e nunca reclama de cansaço. Atende à todos com igual atenção e prazer. Muitas pessoas não entendem como ele consegue dar conta de tantas atribuições com tanto bom humor. Mas ele compreende muito bem o porquê de sua alegria, sua paixão e persistência com o seu lugar (sertão). Ao encerrar de nossa conversa, Abel se emociona ao falar de seu protagonismo enquanto ser humano: “colaborador para um mundo melhor”.
De agricultor à missão de agente multiplicador da convivência criativa com o semiárido. Abel diz que tudo começa com a necessidade de sobreviver, seguida da necessidade de transformar o olhar sobre o sertão, “Só depois, a gente passa a viver melhor nele”, finaliza.
Por: Laura Ferreira