O rei de França e Navarra, Luís XIV (1638-1715), teria dito “Je suis la Loi, Je suis l’Etat; l’Etat c’est moi” (Eu sou a Lei, eu sou o Estado; o Estado sou eu) ao traduzir o espírito de um período histórico em que havia uma centralização total do poder na figura do monarca, o chamado absolutismo. Não existe, entretanto, nenhum registro oficial de que esta declaração tenha sido realmente feita pelo rei.
Imitando Luis XIV, o presidente Jair Bolsonaro disse que “a Constituição [Federal] realmente sou eu”. O absolutismo tupiniquim encarnado pelo mandatário da nação nada mais é do que um acesso febril de autoritarismo. Sem saber o que responder a jornalistas que o aguardavam em frente ao Palácio da Alvorada, após participar de ato golpista contra Congresso Nacional e STF, Bolsonaro soltou a frase que não está escrita em lugar algum.
O presidente da República é tão somente o chefe do Executivo nacional. Ele não é a própria Constituição. A Carta Constitucional assegura, em seu artigo 2º, os três poderes, mas também, posteriormente, define suas composições, funções e prerrogativas, afirmando que eles “são poderes da união, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Se a Constituição estabelece poderes independentes, como poderá ser ela representada apenas por um deles?
Bolsonaro quis falar sobre democracia e Constituição para tentar dirimir as críticas que sofreu, ainda no domingo, por participar de atos que pediam o fechamento do Congresso Nacional e a Suprema Corte, e a volta do AI-5. Saudosistas doentios da ditadura militar estenderam faixas e cartazes pedindo a volta de um ato presidencial, este sim absolutista e autoritário, que cassou mandatos, baixou a censura sobre artistas, liberou a perseguição aos adversários do regime.
Bolsonaro falou para esta gente, entre crises de tosse, pausas mentais e repentinos acessos de fúria. Sobre uma carroceria de um carro, ergueu o braço direito e falou descontroladamente as mesmas baboseiras de sempre, no intuito quase sôfrego de se apresentar como novidade na política e patriota. Ele não representa nenhuma das duas coisas, além de não representar, como já se disse aqui, a Constituição. Bolsonaro representa o atraso.
Se alguma característica há no absolutismo brasileiro é a idiotia. A idiotia de tempos obscuros em que pessoas preferem desacreditar na ciência e levar a sério um vídeo compartilhado pela tia no WhatsApp; são tempos de profunda ignorância, exalada dos esgotos da extrema-direita fascistoide, que questiona profissionais de saúde em tempos de pandemia; são os gestos cada vez mais toscos e rudes de uma claque viciada em notícias falsas e mentiras, sublevada por um fanatismo medieval.
Esta gente que carrega consigo um ódio figadal pela à humanidade é alimentada pelo presidente da República quando ele, ao ser questionado sobre os mortos por coronavírus, respondeu que não é coveiro. É aquele mesmo Bolsonaro que pregou um cartaz na porta do gabinete, na Câmara dizendo que “quem procura ossos é cachorro”, em alusão à busca por desaparecidos no Araguaia, vítimas da repressão política durante a ditadura militar.
O país vive sob o absolutismo da idiotia. Em tempos de quarentena, vírus, isolamento social, máscaras e distanciamento entre pessoas – sobretudo dos idosos, que mais precisam do nosso carinho e cuidado – um presidente fala que “alguns vão morrer, é a vida”. O Brasil precisava de um presidente que abraçasse o país na hora de maior necessidade. Alguém que colocasse a vida em primeiro lugar. Não se pode esperar muito de quem tem como principal marca o gesto de uma arma.
* Mailson Ramos é relações públicas e editor de nossapolitica.net.