O Dia Internacional do Livro, comemorado nesta quinta (23), é de interesse do zagueiro baiano Wallace, 32 anos. Quem o conhece bem, sabe que ele gosta muito de ler.
Com um perfil que foge ao estereótipo do boleiro padrão, o ex-atleta de Corinthians e Flamengo já chegou até a manter um blog sobre literatura, o wallaceleu.com.br, no qual compartilhava impressões sobre as leituras que fazia.
A imagem de intelectual do mundo da bola, porém, também serviu para aumentar a carga sobre ele na hora das críticas. Em qualquer erro do defensor, muitos torcedores aludiam à imagem de “filósofo” ou “escritor” para intensificar as reclamações.
O zagueiro, que hoje joga no Göztepe, da Turquia, diz que esse é o preço que ele e outros jogadores de futebol pagam por assumirem uma condição de protagonista fora das quatro linhas.
“Acho que há um paradoxo. A imprensa quer que o cara se posicione, porém o cara também fica em uma situação delicada, porque se ele se posiciona, é bombardeado. Como achamos o meio-termo? Ser diferente é difícil, e não estou falando de mim, que eu seja diferente, mas é difícil não seguir a mesma trilha de todos”, afirma Wallace à Folha.
“Tem uma grande falácia de que o atleta tem que pensar 24 horas em futebol. O que realmente querem? Que o cara busque conteúdo ou foque 24 horas no futebol? É querer demais que o cara que nem teve base educacional consiga um diferencial.”
Com o Campeonato Turco paralisado em razão da pandemia do coronavírus, o brasileiro, que vive na cidade de Esmirna, sudoeste do país, diz que lê de duas a três horas por dia (o mesmo tempo dedicado durante o campeonato) e também tem consumido conteúdos também em outras plataformas, como podcasts, algo que relata fazer há muitos anos.
Na Turquia, o governo instituiu toque de recolher, e a população está proibida de sair na rua a partir das 14h, segundo o zagueiro.
“Aqui, quando o presidente [Recep Tayyip Erdogan] determina, as pessoas cumprem. Até porque não é um modelo de democracia”, diz.
O tempo livre tem dado a algumas pessoas a oportunidade de colocar as leituras em dia. Para Wallace, porém, quem já não tem o hábito de ler dificilmente vai desenvolvê-lo agora, incluindo seus colegas jogadores. “[O isolamento social] é tão enfadonho que às vezes você fica impaciente. Ninguém vai sair um gênio depois dessa quarentena”, afirma.
Wallace começou a se interessar pelos livros quando ainda fazia testes na base do Vitória, no início da década passada. Ainda sem saber se o futuro lhe reservaria uma oportunidade no clube rubro-negro, o jovem baiano aproveitou uma biblioteca que a equipe tinha à disposição dos atletas no centro de treinamentos.
O primeiro livro que pegou emprestado foi “O Homem que Matou Getúlio Vargas”, de Jô Soares. “Li em quatro dias porque a história era intrigante. E nunca mais parei.”
Durante a entrevista, o defensor citou poemas de Paulo Leminski, frases do ex-jogador Sócrates, e disse que seus três diretores preferidos de cinema são Christopher Nolan, Martin Scorcese e Quentin Tarantino. Apesar de gostar de Janis Joplin e Jimmi Hendrix, não dispensa o forró de Luiz Gonzaga e Gonzaguinha, um “revival” de suas origens (nasceu em Conceição do Coité, interior da Bahia).
Ele também conta que a leitura trouxe benefícios para sua vida pessoal –”os amigos vinham pedir conselhos mesmo eu não sabendo de nada do assunto”— e também dentro de campo. Wallace explica que a capacidade de interpretação ajuda a compreender melhor as instruções do treinador.
Segundo o zagueiro, campeão brasileiro, da Libertadores e do mundo com o Corinthians, encontrou naquele time de Tite um elenco altamente capacitado em interpretar o jogo proposto pelo treinador. Também vê esse perfil no Bahia de Roger Machado, defende a capacidade de Vanderlei Luxemburgo (hoje no Palmeiras) e diz ter curiosidade de trabalhar com Fernando Diniz, do São Paulo, principalmente por sua formação em psicologia.
À medida que foi amadurecendo e conhecendo diferentes gêneros e autores, Wallace encontrou no universo companheiros de equipe com quem pôde trocar experiências literárias. Um deles foi Paulo André, ex-defensor do Corinthians e que hoje é dirigente do Athletico.
O volante Felipe Souto, que é formado em administração e atualmente joga no Ituano, e o meia Yago, do Fluminense, jogaram com ele no Vitória em 2018 e também costumavam discutir sobre livros.
Foi o próprio Wallace que incutiu em alguns companheiros o hábito da leitura, atuando como uma espécie de livreiro particular dos colegas. Aconteceu com Yago e também com Gabriel, ex-atacante do Flamengo, clube pelo qual o atleta jogou de 2013 a 2016.
Na equipe carioca, o zagueiro chegou a montar uma biblioteca com livros de sua própria coleção para os jogadores da base rubro-negra.
“Para o Gabriel eu mandei a trilogia do Drauzio Varella. Para o Paulo Victor [hoje goleiro do Grêmio] mandei o livro do Caco Barcellos, o ‘Abusado’. ‘Casa das Estrelas’, do Javier Naranjo, é muito bom, eu dei para o João Paulo [seu assessor] que nunca tinha lido. Ele adorou”, conta.
“O livro intimida, é quase uma espada para a outra pessoa. Muitos atletas tinham certa restrição de ter diálogo comigo, mas eu também comecei a entender e me colocar no lugar do cara, precisava abordar em uma linguagem que ele me compreenderia, não adiantaria uma linguagem rebuscada.”
Atualmente, Wallace está lendo “Antifrágil: Coisas que se beneficiam com o caos”, do ensaísta e pesquisador libanês Nassim Nicolas Taleb.
Seu contrato com o Göztepe se encerra no fim da temporada europeia, cujo desfecho ninguém sabe ainda como será. O certo é que depois disso vestirá outra camisa, pois ele e o clube não chegaram a um acordo para a renovação. De qualquer forma, ele diz, a experiência de dois anos na Turquia foi enriquecedora.
“A Turquia é um país muito legal. A gente tem uma imagem esquisita do oriente, é muito ocidentalizada e não olhamos muito para cá. O país é muito rico culturalmente”, afirma.
Reportagem Folha