No Brasil em 520 anos de existência, 387 foram de escravidão. O país mais longevo a manter a escravidão no seu seio. Toda e qualquer riqueza gerada neste país foi a partir de trabalho escravo. É o país que teve o maior número de escravizados da história da humanidade (quase 5 milhões de pessoas foram trazidas forçadamente da África pra cá).
A Lei Áurea (1888) concedeu a liberdade mas não deu a cidadania. Nesse contexto de transição do trabalho escravo para o trabalho livre e assalariado, o processo de integração social e de inclusão no mercado de trabalho pelo liberto encontrou forte resistência em diversos segmentos da sociedade. Segundo um artigo publicado no site do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), trabalho remunerado, mesmo que em condições precárias, era oferecido apenas aos imigrantes europeus.
Diante desse desprezo no mercado de trabalho formal, esses indivíduos tiveram de encontrar alternativas para acompanhar a nova ordem capitalista e se reintegrarem ao mundo laboral. Mas, como? A professora de História Rita de Cássia Souza Felix Batista responde: “O povo negro tornou-se diarista, boia-fria, compondo o mercado informal de trabalho. Os vendedores ambulantes multiplicaram-se. Os negros vendiam o que pudessem produzir, confeccionar, tecer, fabricar em suas residências, como verduras, legumes, doces, salgados e etc.”[1] Ou, sem opção de emprego, o destino foi continuar trabalhando para seus antigos donos, sem remuneração ou recebendo muito pouco.
Voltemos um pouco no tempo para entender a relação de causa e consequência. Em 17 de fevereiro de 1854, o Decreto nº 1.331 aprovou as medidas de regulamentação do ensino primário e secundário, tornando-as gratuitas, na Corte, as escolas primária e secundária, e a primeira delas obrigatória aos maiores de sete anos, mas estabeleceu que os escravos não seriam admitidos nas escolas públicas do país, em nenhum dos níveis de ensino. Vejamos o que diz o Art. 69: “Não serão admitidos á matrícula, nem poderão frequentar as escolas: § 1º Os meninos que padecerem molestias contagiosas; § 2º Os que não tiverem sido vacinados; § 3º Os escravos[2].”
Só em 1878, um decreto permitiu a matrícula de negros libertos maiores de quatorze anos nos cursos noturnos. Foram bons tempos para pouco tempo porque em 1911 veio a Reforma Rivadávia Correia que implantou a realização de exames admissionais e a cobrança de taxas nas escolas, impossibilitando o ingresso de grandes parcelas da população nas instituições oficiais de ensino. Isto explica, o fato de em 2018, o analfabetismo entre a população negra com mais de 15 anos ainda ser mais do que o dobro em comparação com os brancos, segundo o IBGE[3].
Nesse ínterim, em 1889, duas leis foram criadas no Brasil: a 1ª negava ao analfabeto votar que até então votava, ou seja, retirou a oportunidade da maioria naquele momento decidir o futuro do país. A 2ª foi a Lei de Combate à Ociosidade que teve no Capítulo VII do Código Penal uma dedicação especial aos “vadios e capoeiras”. Os indivíduos sem trabalho e que não comprovasse renda suficiente para subsistir seriam punidos e até internados em colônias onde adquiririam o hábito de trabalhar. Curiosamente aqueles que estavam expostos a perversidade dessa lei eram os que tinham sido recentemente libertos. Ouso dizer que o Racismo Institucional através de um Estado opressor de ideologia policial estava sendo aperfeiçoado nesta época.
No Decreto nº 9.081, de 3 de Novembro de 1911 (manterei a ortografia da época) o Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil, resolveu aprovar o Regulamento do Serviço de Povoamento. Tal norma disponibilizava cessão de uso do lote com opção de compra ao final e até doação. Parece mais uma estratégia para indenizar os donos das fazendas de escravos[4]. Senão, vejamos: “Art. 2º. …serão acolhidos como immigrantes os estrangeiros menores de 60 annos, que, não soffrendo de doenças contagiosas, não exercendo profissão illicita, nem sendo reconhecidos como criminosos, desordeiros, mendigos, vagabundos, dementes, ou invalidos, chegarem aos portos nacionaes com passagem de 2ª ou 3ª classe, á custa da União, dos Estados ou do terceiros; e os que, em igualdade de condições, tendo pago as suas passagens, quizerem gosar dos favores concedidos aos recem-chegados[4].”
O Art. 10. diz: “E’ livre ao immigrante escolher e tomar o destino que lhe aprouver. Paragrapho unico. Os favores para localização de immigrantes como proprietarios só poderão, entretanto, ser concedidos, quando o nucleo colonial por elles escolhido estiver em fundação e dispuzer de lotes preparados para os receber[4].” Em geral a área de cada lote rural não poderia ultrapassar 25 hectares, se o núcleo fosse à margem ou nas proximidades de estrada de ferro ou de rio servido por navegação a vapor, podendo ir até 50 hectares nos demais casos.
Qual a definição de núcleo colonial? O Art. 40 vai dizer que nucleo colonial “é a reunião de lotes medidos e demarcados, de terras escolhidas, ferteis e apropriadas á agricultura ou á industria agro-pecuaria, em boas condições de salubridade, com agua potavel sufficiente para os diversos misteres da população, contendo cada um delles a área precisa para o desenvolvimento do trabalho do adquirente, servidos por viação capaz de permittir transporte commodo e facil, em favoravel situação economica, e preparados para o estabelecimento de immigrantes como seus proprietários[4].”
E se o imigrante quiser voltar? O Art. 39 afirma que os lotes de terras possuídos a título definitivo pelos imigrantes que tiverem direito à repatriação poderão ser por eles vendidos ou transferidos em seu proveito, sem ofensa a direito de terceiros relevando-se qualquer debito que acaso tenham eles contraído com o Governo. No caso de título provisório, conceder-se-à autorização para que o transfiram em seu benefício, com os mesmos direitos que lhes assistirem. Veja agora que Brasil bondoso para com os imigrantes, Art. 66. “Normalmente em cada lote rural será construida uma casa em boas condições hygienicas, para residencia do immigrante e sua familia, preparando-se tambem terrenos para as primeiras culturas a serem feitas pelo adquirente[4].”
Fica bem claro no decreto acima, a cota recebida pelos imigrantes (brancos). E aos ex-escravos qual a estratégia de inclusão? Neste contexto, o Brasil libertou e condenou. Isso reverbera até hoje. Basta olhar os indicadores de exclusão racial. Nas eleições de 2018 apenas 4% dos candidatos eleitos para cargos de senador e deputado estadual e federal são pretos, nenhum governador. No serviço público federal, poder executivo: apenas 4% dos servidores são negros. Dos alunos de medicina representamos 2,7%. O salário de um branco pobre é, na média, 46% maior do que o rendimento de um negro pobre e dois em cada três desempregados são negros. Já da população carcerária somos 67%. Neste mesmo Brasil 75,5% dos jovens assassinados são negros. Destaca ainda, o Anuário da Violência que 75,4% das vítimas pelas polícias brasileiras eram negros[5].
O Ipea divulgou que os negros são os responsáveis por 60% das doações de coração no SUS (Sistema Único de Saúde). Ao mesmo tempo, 56% dos favorecidos com transplantes de órgãos são brancos e apenas 10% são negros. Em procedimentos de recepção de fígado, 8 em cada 10 são feitos em pessoas brancas. Cerca de 40% da população negra e parda no país morre por doenças como fibrose e cirrose [6]. As dificuldades para receber remédios, fazer consultas e exames clínicos estão entre as causas dessa desigualdade. SOMOS UMA MAIORIA MINORIZADA!
De avanço, temos o Estatuto da Igualdade Racial que não é mais efetivo porque não tem um Fundo de promoção para as políticas. Só se implementa política pública com dinheiro e pra ter dinheiro é preciso de orçamento. O que não há. Restam tímidas políticas afirmativas muito contestadas pelos defensores do status quo, muito embora a opinião destes não apresente alternativa, apenas crítica pela crítica e argumento risível. Nesta toada, o dia da suposta Abolição da Escravatura deixa uma ressaca há 132 anos e é motivo de preocupação e de luta ao invés de comemoração. É preciso de ressignificar a participação deste povo espoliado nesta diáspora.
Sem contar as diversas formas contemporâneas de manifestação do racismo, da discriminação racial ou do preconceito racial. Muitos apelam para ópera bufa do pérfido discurso da meritocracia, com qual busca justificar seus privilégios e negar um contexto histórico porque as exceções confirmam a regra. Outros são intolerantes a injustiças mas defensores do racismo recreativo, alguns desses ao ler esse textículo podem se revestir de ódio, dizer que é “mimimi”, “vitimismo” e tal. Viva o Brasil pátria amada que seja gentil para os seus pretos também. Enfim, um salve para os negros conscientes e para aqueles que hão de se conscientizar. Salve para os brancos antirracistas na prática. Sigamos adiante que a estrada é longa!
Fontes:
[1] https://www.cesjf.br/revistas/cesrevista/edicoes/2011/08_HISTORIA_OCombate.pdf
[2] http://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/viewFile/1459/500
[3] https://extra.globo.com/noticias/educacao/analfabetismo-entre-negros-cai-mas-ainda-o-dobro-de-brancos-24079548.html.
[4] https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-9081-3-novembro-1911-523578-republicacao-102836-pe.html
[5] https://www.almapreta.com/editorias/realidade/anuario-da-violencia-75-dos-mortos-pelas-policias-brasileiras-sao-negros.
[6]https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/transplantes-refletem-desigualdades-bfzlh01fn7xivpcecwjbuywjy/.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45092235. Acesso em 01/05/2020. Acesso em: 12/05/2020.
Disponível em: https://noticias.r7.com/brasil/salario-de-branco-pobre-e-46-maior-do-que-o-de-negro-pobre-26112018. Acesso em: 12/05/2020.
Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/09/apenas-4-dos-candidatos-eleitos-para-cargos-de-senador-e-deputado-estadual-e-federal-sao-pretos.ghtml. Acesso em: 12/05/2020.
Disponível em: https://www.buzzfeed.com/about. Acesso em: 12/05/2020.