Nós lutamos muito pelo fim da Escola Pública de Trânsito devido a forma como ela funcionava, de forma aleatória. Nós sentimos muito pelo o que tá acontecendo, ninguém gosta de ver essa situação, mas já era previsto”, desabafa um dono de autoescola sobre a Operação Mão Dupla deflagrada na quarta-feira (24) pela Policia Civil, que investiga fraudes em licitação do Departamento Estadual de Trânsito da Bahia (Detran-BA) que contratou uma fundação para prestar serviços de educação no trânsito em escolas públicas. O dinheiro desviado estimado pelos investigadores é de cerca de R$ 19 milhões.
Essa licitação foi feita em 2016 por meio da Escola Pública de Trânsito (Eptran), criada com o objetivo de facilitar o acesso a primeira habilitação de pessoas de baixa renda. ”As autoescolas foram muito prejudicas ao longo dos anos. A Eptran tinha um papel social que não era bem cumprido. Se o Detran-BA solicitasse uma parceria conosco [para atuarmos nas escolas], iriamos fazer um trabalho bem melhor”, diz Rogerio Santos, dono da autoescola Santo Sé.
A investigação fez com que, em menos de 15 dias, o Detran-BA estivesse novamente no centro de operações policiais na Bahia. Depois da operação que revelou o Cartel das Placas, agora foi a vez da Mão Dupla, que cumpriu 11 mandados de busca e apreensão envolvendo quatro pessoas, quatro empresas e duas fundações de direito privado. O nome dos envolvidos não foi divulgado. Diversos materiais foram apreendidos, inclusive quantias em dinheiro e cheque que totalizaram aproximadamente R$ 80 mil reais, segundo os investigadores.
A operação foi coordenada pela delegada Fernanda Asfora, que lidera o setor de combate a corrupção e lavagem de dinheiro, uma estrutura do Departamento de Repressão e Combate ao Crime Organizado (Draco) da Policia Civil. “Não há nenhuma relação dessa operação com a anterior, que inclusive foi do Ministério Público da Bahia”, garantiu.
Crime
Segundo Fernanda, as investigações se iniciaram a partir de uma denúncia de irregularidades no processo. “Houve uma análise apurada do processo licitatório em questão, bem como de toda execução do contrato. A partir disso, foram encontrados diversos indicativos de fraudes, inclusive de que essa fundação tinha sido contratada de fachada, pois ela não tinha servidores no seu quadro, só dois funcionários. Ela não tinha condição nenhuma de executar o contrato”, explica.
No contrato, segundo os investigadores, estava previsto a execução de atividades educativas em escolas públicas na capital e interior, inclusive com a necessidade de ministrar aulas de educação no trânsito nesses lugares. No entanto, com apenas dois funcionários, o que foi observado é que a fundação não tinha estrutura para prestar o serviço.
“Não tinha porte físico e tampouco quadro de funcionários. O serviço era volumoso, envolvia professores, confecções de materiais, ida em escolas públicas. Tudo acabou sendo realizado de forma deficitária, mas não pela fundação que foi contratada. Ela subcontratou pequenas empresas que fizeram essa prestação de serviço, o que era expressamente vedado no contrato”, diz Fernanda.
Os indicativos mostram que as empresas subcontratadas eram usadas para fazer os repasses das verbas pagas pelo Detran para os agentes envolvidos na fraude, segundo a polícia. “Foram repassados valores mensais em torno de R$ 605 mil durante os três anos. E ao final houve o repasse de 19 milhões, o que possivelmente se deu de forma irregular”, afirma a delegada. A apuração da Polícia Civil revelou também a participação de ex-dirigentes do Detran-BA e de outros agentes públicos ligados ao órgão. Há ainda indícios de lavagem de dinheiro.
Ainda segundo os investigadores, o contrato assinado só foi executado até 2019, quando foi suspenso pela descoberta de possíveis fraudes no processo licitatório e execução. O ano de 2019 foi também o mesmo que o Detran suspendeu o funcionamento da Eptran após recomendação do Ministério Público da Bahia (MP-BA) e parecer da Procuradoria Geral do Estado (PGE), que se manifestaram contrários à realização dos cursos oferecidos pela escola, para a formação e capacitação de condutores. Em nota, o Detran-BA disse que colabora com a investigação.
Autoescola
Para os donos de autoescola, os prejuízos gerados pela Eptran não se resumiram apenas às questões licitatórias, mas também à forma como o órgão atuava. “Lá não eram pessoas de classe social baixa que tiravam a carteira. Tinha gente importante que passava por lá. Nem sabemos falar o quanto nós perdemos com isso, pois foi muito prejuízo. Muitas pessoas deixavam de se matricular numa autoescola”, revela Obi Soares, dono da Autoescola Nota 10.
Rogério Santos, já citado no início da reportagem, apresenta o mesmo sentimento. “As autoescolas foram prejudicas ao longo dos anos. A Eptran anunciava muitas vagas e não chamava todas as pessoas, que ficavam na fila e acabavam não tirando a carteira. Tinha também gente que não poderia receber e recebia. Não é à toa que após seu encerramento, duas advogadas vieram terminar as aulas conosco. Elas tinham começado na Eptran”, conta.
Todos os procurados demonstraram interesse em realizar o serviço de educação no trânsito em escolas públicas. “A gente ainda não tem uma parceria com o Detran-BA para ir até as escolas e fazer isso, que é importante. Os jovens precisam. E nós temos profissionais capacitados para isso, além de que as autoescolas estão espalhadas em toda a Bahia, em diversas cidades, mais presentes do que era a escola pública”, conclui Rogério.
Em nota, Wellington de Oliveira, presidente do Sindicato das Autoescolas e Centros de Formação de Condutores da Bahia (Sindauto Bahia), disse que já apresentou ao Detran-BA um projeto de CNH Social a fim de regularizar e ampliar o alcance desta iniciativa para todo estado. “Além de não cumprir as normas, a Eptran gerava um impacto financeiro para os empresários do segmento. Ressaltamos que o sindicato não é contra a iniciativa social, mas, sim, ao seu desvio de finalidade e destinação”, diz.
Relembre
A outra operação que colocou o Detran-BA nas manchetes policias nesse mês de fevereiro foi a que revelou o Cartel das Placas. O esquema envolveu empresas credenciadas pelo Detran para prestação de serviço de venda de placas de veículos em Salvador. Ao final da operação, duas pessoas foram presas preventivamente e foram apreendidos um total de R$ 593 mil em espécie e cheques, dez celulares, cinco notebooks, dois ipads, uma CPU e diversos documentos. No total, 13 mandados de busca e apreensão foram cumpridos.
Apesar do Detran-BA informar que existem 29 empresas cadastradas para ofertar o serviço na cidade – em toda a Bahia são 273 -, a operação mostra que empresários do ramo teriam se unido para formar um cartel, usando várias empresas em nomes de laranjas e familiares. O esquema funcionava há mais de 30 anos.
As empresas e pessoas alvos da operação não tiveram os nomes revelados pelo MP. Há indícios de que membros dessa organização criminosa teriam o costume de cobrar uma quantia considerável a empresários interessados em credenciar suas empresas no ramo de estampamento, além de alterar no sistema a escolha da empresa feita pelo consumidor no momento da compra, a fim de direcioná-lo para as participantes do conluio.
Segundo informações reveladas na quarta-feira pela coluna Satélite do CORREIO, o esquema rendia um lucro anual de ao menos R$ 5 milhões para a rede de empresas suspeitas de dominar o setor de emplacamento veicular na Bahia há mais de três décadas. Cada uma das 14 empresas até agora identificadas como integrantes do esquema recebia, em média, R$ 30 mil mensais, já descontadas despesas legais e operacionais – cerca de R$ 360 mil por ano. Os repasses eram feitos pelo empresário Adriano Muniz Decia, segundo a Satélite, preso a pedido do Grupo Especial de Combate às Organizações Criminosas do MP (Gaeco) e tido como o principal operador do cartel.
Ainda de acordo com a coluna, as investigações são o início de uma ampla ofensiva para desmontar outros ramos de corrupção supostamente montados no Detran-BA.
* Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.
Fonte: Correio