Marie McCready teve sua vida virada de cabeça para baixo quando, num belo dia, acordou sem poder falar ou emitir qualquer som pela boca. Os médicos não conseguiram encontrar uma razão física que explicasse o problema, e muitas pessoas a sua volta passaram a desconfiar de que ela estava se recusando a falar.
Desiludida e sem apoio, vista com desconfiança por parentes, vizinhos e professores, a adolescente chegou a tentar suicídio e a ser internada em uma clínica psiquiátrica. Mas sua vida mudou drasticamente quando, finalmente, pôde voltar a falar — após descobrir o que estava por trás de seu impedimento.
Sua incrível história é contada no podcast ‘Que História!’, da BBC News Brasil, apresentado por Thomas Pappon.
De repente, calada
Marie McCreadie tinha 12 anos quando sua família se mudou de Londres para Wollongong, ao sul de Sydney, na Austrália. Tudo ia bem na nova vida no que viam como “um paraíso”, até uma fatídica manhã, cerca de um anos depois.
“Acordei com uma forte dor de garganta e um forte resfriado”, contou Marie ao programa Outlook, da BBC. . “Dias depois, virou uma bronquite. Passei uma semana bem mal, com febre. Depois fui melhorando, a infecção no peito foi embora, a febre também. Mas quando estava boa de novo, seis semana depois, minha voz tinha sumido.”
“Eu não sabia o que fazer. Quando dava risada, ou quando tentava sussurrar, mesmo quando tossia, não saía som algum.”
O diagnóstico inicial do médico foi de laringite. Depois, foi de mutismo histérico, uma doença mencionada pela primeira vez no final do século 19, caracterizada por um silêncio obstinado ligado a uma ansiedade extrema ou a um evento traumático.
Em outras palavras, o médico achava que Marie podia falar, se quisesse.
Mas Marie, então com 13 anos, não estava se recusando a falar. Mesmo porque estava tendo vários problemas por causa disso.
“Eu não podia usar o telefone, não podia marcar dentista, médico, cabeleireiro…E se eu tivesse um acidente? Teve uma vez em que fui acampar com amigos, eu estava numa trilha sozinha, escorreguei e cai num barranco, de uns três metros. Fiquei presa lá embaixo, sem conseguir sair, e não tive como chamar ajuda, achei que fosse ficar presa ali a noite inteira… Tive de ser bem mais cuidadosa.”
Na escola católica, dirigida por freiras, também não foi fácil lidar com essa situação.
“Havia uma freira que dirigia um coral, e ela dizia que todos os alunos deveriam participar desse coral e me incluiu. Tive de aprender a letra de Ave Maria em latim, eu formava as palavras com a boca, sem emitir som algum, fazendo de conta que estava cantando, era constrangedor.”
“Meus amigos acharam divertido no começo. Mas com o passar dos dias, começa a encher o saco. Eu conversava usando gestos e mímica. Alguns amigos conseguiam ler meus lábios. Eu andava sempre com pequenos blocos de notas e uma caneta, para me comunicar escrevendo. Mas era difícil participar de uma conversa assim. Muitas vezes não funcionava. Tente contar uma piada escrevendo ela num bloco!”
“Era muito frustrante. Quando discutia com alguém, não conseguia passar meu ponto de vista. A pessoa simplesmente virava as costas e ia embora. O que eu queria era gritar na cara dela, mas não podia. Tinha que absorver essa frustração. Eu tinha muita raiva dentro de mim.”
“Uma vez eu estava num baile. Um rapaz dançou comigo algumas vezes e eu queria conversar com ele, mas não conseguia. Eu ficava sorrindo, e por mais que tentasse dizer o que eu queria, não havia como. Eu ficava com raiva, com raiva de mim mesma. ‘Ô menina estúpida’, eu pensava. E quando voltava pra casa, eu deitava no chão e ficava chorando. Eu queria falar, mas não sabia como.”
‘Uma bruxa’
Sob forte pressão, sem conseguir falar, Marie começou a duvidar de si mesma.
“No mundo em que cresci, pessoas como padres, freiras, médicos sempre estavam certos! Você não questionava o que eles diziam. No começo, quando me chamavam de ‘mulher dos infernos’, era engraçado, mas depois de um tempo, ficou pesado. Quando me neguei a confessar, me proibiram de participar da missa que havia na escola toda sexta-feira. Tinha de esperar do lado de fora. Até pensei, ‘que bom! não tenho que participar dessa coisa chata’. Mas foi uma separação. Estava sendo separada de minhas amigas. Comecei a acreditar neles, que eu era uma pessoa má, que pertencia ao diabo, uma pessoa abandonada por Cristo, uma bruxa.”
Mas uma grande surpresa — e mudança na vida — ainda estava por vir. Quando estava com 25 anos de idade, um belo dia, no trabalho, ela começou a passar mal.
“Eu não estava bem. Comecei a tossir. Fui ao banheiro e comecei a cuspir sangue. Fiquei apavorada. Achei que estava morrendo. Parecia que tinha alguma coisa se mexendo no fundo da garganta. Achei que estivesse cuspindo pedaços de mim. A telefonista chamou uma ambulância e fui levada a um hospital. Ali, detectaram um caroço na minha garganta.”
“Me deram anestesia e retiraram esse caroço. Quando limparam ele, viram que era uma moeda, de 3 centavos de dólar australiano. Uma moeda que saiu de circulação em meados dos anos 1960. Não faço ideia de como ela chegou ali. Foi um choque. Foi diferente do choque da primeira vez, quando não pude falar. Dessa vez foi, ‘Não, peraí, não é possível!'”
A hipótese mais provável é de que ela engoliu a pequena moeda, de 16 mm de diâmetro, sem querer. Pode ter sido uma moeda da sorte colocada num bolo de Natal, como é tradição em alguns países. Ou uma moeda perdida em uma lata ou garrafa de bebida. O fato é que essa moeda ficou presa entre as cordas vocais de Marie por 12 anos. Isso impedia que elas vibrassem ou produzissem qualquer som.
Vizinhos e amigos da família suspeitavam de Marie, achando que ela não falava por não querer ou por algum problema mental. Chegaram a sugerir que ela fosse internada.
Isolada, frustrada e cheia de dúvidas, Marie, aos 14 anos, chegou a tentar suicídio. Ela foi parar no hospital. Mas quando se recuperou, em vez de ser levada pra casa, foi internada numa clínica psiquiátrica.
“Foi um inferno. Minha ala era de mulheres dependentes de drogas ou vítimas de colapso nervoso ou de abuso. Era uma cama ao lado da outra, separadas apenas por cortinas. Eram todas adultas, eu era a mais nova, aquilo era um pesadelo pra mim. Você tinha que pedir papel higiênico para ir ao banheiro. O banheiro não tinha portas.”
“Vi pacientes voltando de sessões de terapia de choque elétrico. Tinha ouvido os gritos. Fiz uma sessão, é muito cruel. Você é levado a uma sala que parece uma câmara de torturas. Você tá morrendo de medo e ninguém explica nada. Pelo que pesquisei depois, vi que essa terapia nunca fez bem a ninguém, e que o excesso de choques poderia causar sérios danos cerebrais.”
“E eu não conseguia me comunicar porque não podia ter papel e caneta, por razões de segurança. Só as enfermeiras andavam com papel e caneta. Uma vez uma enfermeira me disse ‘Você não precisa de papel nem caneta, é só você falar’. Minha cabeça estava explodindo de tanta raiva e frustração. E achava que fosse passar o resto da vida nessa clínica.”
A essa altura, Marie tinha perdido toda a confiança nos pais, que a tinham colocado ali. Desesperada, ela só via uma saída: fugir.
“Havia visitas nas noites de sábado. E teve uma noite em que eu pensei ‘vou embora, eles não vão me tocar de novo’. A gente usava roupa comum, e quando vi uma família saindo eu simplesmente me juntei a eles. Eu sabia que não podia voltar pra casa dos meus pais, eles me mandariam de volta à clínica. Então fiz uma longa caminhada, de 18 quilômetros, até a casa de uma amiga.”
Mas, sem muitas opções, Marie acabou voltando pra casa dos pais. No entanto, desconfiada de todos a sua volta, ela passou a se isolar do mundo.
“Quando voltei pra casa, não confiava em ninguém. Não queria ver ninguém. Toda confiança que eu tinha nas pessoas sumiu quando estive na clínica. Eu ficava deitada no meu quarto, ouvindo rádio. Não queria estar perto de ninguém. Achava que as pessoas só queriam me maltratar.”
A descoberta
Marie passou seis meses isolada do mundo. Mas aos poucos ela se conformou com a ideia de que sua voz não voltaria. E começou a criar uma nova vida para ela. O primeiro passo foi começar a trabalhar, na cafeteria de sua mãe. Ela aprendeu a linguagem dos sinais. E retomou os estudos, concluindo um curso para se tornar datilógrafa. Ela não falava, não sabia por que, mas pelo menos podia levar uma vida adulta razoavelmente normal.
“Na época, eles fizeram exames de sangue e raio-X. Mas o raio-X foi mais embaixo, mais da região do peito do que da garganta. E mesmo se tivessem feito o raio-X do lugar certo, não teriam visto a moeda, escondida atrás de um osso.”
E assim, sem a moeda na garganta, o mundo de Marie McCready mais uma vez começou a mudar.
“Eu pude sentir o som na minha garganta. Foi um gemido. Primeiro achei que alguém estivesse fazendo uma brincadeira. Mas depois comecei a chorar, e o meu soluço do choro era um som totalmente novo pra mim. Depois de tanto tempo… Fiquei histérica. O médico teve que me dar um calmante.”
Marie tinha agora pela frente um novo desafio: o de voltar a aprender a falar.
“Eu não tinha a técnica de respirar, o que parece uma bobagem, mas não é. Quando você é um bebê e aprende a falar, também está aprendendo a respirar. Você tá aprendendo a usar o diafragma para controlar o volume da fala. Quando voltei a falar, era um esforço tão grande que eu ficava tonta, quase desmaiava. Porque não estava falando direito. O som estava saindo, mas não havia ar suficiente nas palavras para ter volume. Tive de fazer terapia de fala, por umas quatro semanas. Foi aí que as técnicas de mímica, de fazer de conta que estava falando, como quando eu participava do coral, me ajudaram. Aquela freira, indiretamente, me ajudou a voltar a falar.”
Seu primeiro telefonema foi para sua mãe. “Ela começou a chorar. ‘Eu te disse que tua voz voltaria um dia! Eu te disse!’ ela dizia.”
Marie também teve de lidar com vícios dos tempos em que era muda e que causaram alguns constrangimentos.
“Quando as pessoas faziam coisas que me irritavam, eu xingava ou respondia. Mas como não saía som, não tinha problema. Mas agora as pessoas estavam ouvindo o que eu dizia. Tive de me monitorar. Além disso, quando eu costumava a escrever comentários em blocos de notas, eles tinham de ser curtos, porque você está conversando com pessoas e as pessoas não gostam de ficar esperando. Então eu era concisa. Quando você vocaliza essas mensagens, elas parecem bem abruptas, pode parecer grosseria.”
“Foi uma montanha russa de emoções. Eu estava feliz e animada. Queria ler em voz alta, cantar em um coral, conversar com todas as pessoas …Mas tinha momentos em que me batiam as memórias da escola, da clínica, e em que penso que nada disso teria acontecido se tivessem achado a moeda antes.”
Marie McReadie guardou a moeda e a colocou em uma pulseira, que usa de vez em quando. Suas memórias ela registrou em um livro, Voiceless (‘Sem Voz’), lançado em 2019.