Quando se preparava para uma fazer as fotos da reta final da gravidez, em 2016, a psicóloga Adriana Binsfeld Hess, 37, de Porto Alegre (RS) começou a sentir fortes dores abdominais.
Levada ao hospital foi diagnosticada com síndrome de Hellp, um quadro obstétrico grave e raro, e submetida a uma cesárea de urgência: Laura nasceu na 29ª semana de gestação, com 37 cm e 950 gramas.
Enquanto a bebê lutava pela vida na UTI neonatal, a mãe fazia o mesmo na UTI de adultos. Adriana sofreu um rompimento hepático decorrente da síndrome, paralisação renal aguda e ficou dez dias em coma induzido. Mãe e filha sobreviveram e estão bem.
Quando voltou do coma, a psicóloga conta que viveu um “tsunami de emoções”, traduzido em transtorno pós-traumático. Sentia angústia, ansiedade, medo de não voltar ao que era antes. “Eu não conseguia andar, nem escovar os dentes sozinha. Não conseguia lembrar dos conteúdos das aulas”, diz ela, que à época era professora universitária. Com ajuda da psicoterapia, conseguiu superar os sintomas emocionais.
Assim como Adriana, um em cada três pacientes (36%) egressos de unidades de terapias intensiva no Brasil apresenta comprometimento da saúde mental, revela estudo feito pelo Hospital Moinhos de Vento (RS) em parceria com o Ministério da Saúde, por meio do Proadi-SUS (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS).
Publicado no Chest Journal, um dos principais periódicos médicos científicos na área de cuidados intensivos, o trabalho analisou a qualidade de vida e a saúde mental de 579 pacientes egressos de UTIs de dez hospitais públicos e filantrópicos do Brasil, seis meses após a alta.
Um quarto deles (24%) apresentou sintomas de ansiedade, 20% de depressão e 15% de estresse pós-traumático. É o estudo multicêntrico com maior número de pacientes já feito no país para avaliar saúde mental de egressos de UTI.
A pesquisa foi feita antes da pandemia de Covid-19 e demonstra que o impacto emocional das internações nas unidades críticas ainda é subdiagnosticado e que precisa entrar no radar dos gestores e profissionais de saúde. As taxas são compatíveis a outros estudos feitos na Europa e nos EUA.
“A UTI é o setor mais caro do hospital, onde se investe mais em recursos humanos e tecnológicos na assistência, mas não se tinha dados da qualidade de vida desses pacientes após a alta”, diz o médico intensivista Regis Goulart Rosa, coordenador do estudo.
Segundo ele, além da alta prevalência de transtornos psiquiátricos, 70% dos pacientes avaliados apresentavam mais de um distúrbio. “Tinham sintomas de depressão e de estresse pós-traumático, ou sintomas de ansiedade e depressão. E quanto mais síndromes psiquiátricas apresentam, pior é a qualidade de vida.”
Quadros de transtornos psiquiátricos antes à hospitalização estão ligados a um maior risco de adoecimento mental no pós alta da UTI.
“Indivíduos jovens ou que tinham histórico prévio de algum transtorno, como depressão, tiveram risco maior de acometimento da saúde mental no pós UTI.”
O estresse gerado pela internação também é outro fator de risco importante. “Para muitas pessoas, estar na UTI significa proximidade com a morte, incerteza da ocorrência de sequelas, fragilidade física, ficar distante dos familiares, sem apoio emocional adequado.”
O pós-alta é um outro momento de muita angústia, especialmente naquelas pessoas que apresentam redução da capacidade física em relação a que tinha antes da internação.
“O prejuízo da imagem corporal pesa muito. Às vezes o paciente sai com edemas, inchaço, fraqueza muscular, disfunção sexual, dificuldade de concentração e cognição”, diz.
O estresse financeiro também causa grande impacto à saúde emocional. Um terço desses pacientes ainda não tinha retornado às atividades profissionais três meses após a internação na UTI.
“As pessoas perdem renda e o gasto com saúde aumenta porque elas apresentam novas comorbidades, precisam gastar com medicamentos, consultas, reabilitação. Não afeta só o paciente, mas todo o seu entorno.”
De acordo com Rosa, só um terço dos pacientes avaliados estava com acompanhamento de saúde mental adequado.
Além do subdiagnóstico, esses transtornos tendem a ser subvalorizados pela sociedade. “Tem um pensamento corrente que esses pacientes devem ficar muito agradecidos por estarem vivos. As pessoas focam muito nas sequelas físicas e o resto não importa muito.”
Para o médico, é muito importante desenvolver ferramentas para rastrear, reconhecer, prevenir e reabilitar precocemente problemas de saúde mental.
“Às vezes, o próprio paciente e a família não reconhecem, não valorizam. Às vezes, é o profissional de saúde que não foi treinado para isso.”
Rosa cita um recente estudo publicado pelo BMJ (British Medical Journal) que identificou que pacientes que passaram por internação em UTI tiveram, posteriormente, risco aumentado para suicídio. “É uma situação muito séria que não pode continuar sendo negligenciada.”
Segundo o médico, resultados preliminares de estudos com pacientes de Covid-19 que sobreviveram a uma internação de UTI mostram que o potencial de danos à saúde mental pode ser ainda pior.
“As UTIs fecharam, eliminaram ou reduziram muito as visitas familiares. Imagine o estresse emocional de uma pessoa que está indo sozinha para a UTI com uma doença grave, que sabe que risco de sequelas físicas e de morte é alto.”
BN | Folhapress