Esta matéria deveria ser em primeira pessoa. Só que o plano de segurar o status de nunca ter contraído a covid-19, durante quase dois anos, caiu por terra com a chegada da variante ômicron, altamente contagiosa, apesar de menos mortal (louvada seja a vacina). Parece ser mais fácil conhecer alguém que pegou a doença do que aqueles que permanecem firmes, merecendo até uma placa de honra ao mérito da Organização Mundial da Saúde por se manter “covirgem”, mesmo com exposições necessárias, como o uso de transporte público ou trabalhos considerados propícios ao contágio. Para estes guerreiros e guerreiras, uma pergunta: qual é o segredo?
Fomos atrás de pessoas que se mantêm livres da covid. Gente que trabalha com público, pega ônibus, convive com pessoas que pegaram, mas nunca “positivaram”, como se diz. Genética, cuidados com o isolamento, vacina ou sorte? No meio desse caos pandêmico, a bancária Marcela Moura já pulou muita fogueira, e é quase uma sobrevivente. No último mês, um surto de covid-19, entre funcionários de bancos, fez com que 50 agências fossem fechadas, temporariamente, por falta de funcionários em Salvador. Marcela foi uma exceção à regra. Em dois anos de pandemia, ela nunca pegou covid-19 e pode provar. Foram mais de 14 testes, todos negativos. A agência dela fechou três vezes em janeiro.
“Toda vez que um funcionário testa positivo, temos que fazer o teste para retornar ao trabalho presencial. Durante esses quase dois anos de pandemia, eu já fiz o teste PCR e o sorológico 14 vezes. Sempre faço os dois juntos e todos deram negativo. Posso dizer que já pulei muitas fogueiras, pois conheço muitas pessoas que tomam os mesmos cuidados e até mesmo não saem de casa, mas contraíram o vírus”, conta Marcela, que fez o último teste há 15 dias, quando outros funcionários testaram positivo. Deu negativo de novo.
“Eu achei que a última vez iria pegar, mas fiz o teste e deu negativo novamente. Graças a Deus e ao SUS, já estou duplamente vacinada, aguardando para tomar a 3ª dose. Se a minha vez chegar, que seja leve”, completa Marcela, que no primeiro ano de pandemia trabalhou num sistema de rodízio entre home office e presencial. Em 2021, passou a ser 100% in loco. Marcela toma todos os cuidados recomendados pela Organização Mundial da Saúde. Como trabalha com o público, usa frequentemente álcool gel nas mãos, antes e após cada atendimento. O uso constante de máscara (N95) e o distanciamento social também fazem parte da rotina. Comportamento bem parecido com o do fotógrafo oficial do Bahia, Felipe Oliveira. Ele registra treinos e jogos do tricolor e sua exposição nos estádios é evidente. No retorno do futebol, precisava fazer testes constantes, todos negativados. O segredo? Segundo ele, máscara, álcool em gel e um pouquinho de sorte também.
“Nunca abandono a máscara e sempre uso álcool. Como utilizo lentes de longo alcance, procuro sempre ficar isolado nos treinos e jogos. Não preciso ficar próximo das pessoas. Evito ambientes como vestiário [dos atletas], por exemplo”, conta Felipe, que já viu a filha, o genro e os dois netos pegarem covid. “Evito contato direto com pessoas e mantenho o isolamento desde o início da pandemia. Não baixei a guarda. Mas acredito que também dei muita sorte”, completa o fotógrafo.
Os dois exemplos acima chamam a atenção para um detalhe: ambos os “covirgens” continuam seguindo à risca os protocolos de segurança. É um fator decisivo, mas tem gente pegando covid mesmo se cuidando, principalmente nesse período de estouro de casos por conta da variante ômicron. A explicação pode estar muito além do fator sorte. Cientistas estão buscando essa resposta, que pode estar nas células chamadas Natural Killers (NK). Pense nelas como exterminadoras naturais que, quanto antes forem ativadas, menos chances o coronavírus tem de invadir nosso corpo. As NK são praticamente um Arnold Schwarzenegger dentro de nós. Cientistas estão estudando a relação de uma resistência natural com os genes MICA e MICB. Eles são responsáveis pela ativação ou não das NK. Testes sugerem que pessoas com mais MICBs têm mais resistência.
“Essas células seriam os nossos defensores naturais. E qual a explicação? É que nas pessoas que são sintomáticas, que desenvolveram sintomas, haveria uma demora para acionar essas células [NK]. Já nas pessoas resistentes, essa resposta seria mais rápida. Não é um mecanismo simples, sabemos que tem outros genes e outros mecanismos envolvidos”, disse a geneticista Mayana Zatz, diretora do Centro de Estudos em Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), à Globo News. Ela lidera uma pesquisa bem curiosa na USP, iniciada no ano passado.
Casais discordantes
Os pesquisadores analisaram 86 casais brasileiros em que um foi infectado e o outro não, apesar de compartilharem o mesmo quarto durante a infecção. Eles foram denominados casais discordantes. Os testes mostraram que pessoas mais resistentes tiveram mais exemplares do MICB, enquanto os mais vulneráveis ao contágio apresentaram as moléculas MICA, que inibem a ativação das Natural Killers (NK). É um ponto muito importante, pois pode ser a chave para remédios contra a covid. “Podemos pensar, futuramente, se seria possível aumentar a expressão do MICB com a ingestão de alguma droga, por exemplo, e ajudar as células de defesa a combaterem a infecção”, completa Zatz. Curiosamente, as mulheres foram mais resistentes na pesquisa, obtendo mais MICB: foram 57 contra 29 homens.
Os “covirgens”, inclusive, viraram peça importante nas pesquisas sobre a doença. A revista científica Nature publicou um artigo, em agosto do ano passado, procurando gente que, mesmo exposta, não pegou covid. Mais de mil pessoas pelo mundo foram recrutadas e o estudo está em andamento, ainda sem resultados preliminares. A ideia é justamente mapear os genes e desenvolver possíveis drogas contra o coronavírus.
Se tem alguém que mistura exposição e resistência, é a jornalista Alyne Souza. Todos os dias pega transporte público (ônibus e metrô), trabalha com o público, mas permanece “covirgem”. “Para pagar as passagens, uso somente o smartcard para evitar pegar em dinheiro. Consegui mudar meu horário de trabalho para 9 horas e assim pego ônibus vazio. Me sento afastada das pessoas, em cadeira única ou fico em pé e uso muito álcool. Sou a maluca do álcool”, diz Alyne.
“A primeira questão é a prevenção, né? Usar máscaras indicadas, que são as N95 e PFF2. Estas, de fato, protegem mais. Mas vem o ponto que, no nosso país, nem todos podem comprar estas máscaras. É uma questão complexa e o que temos, até agora, são hipóteses”, explica a virologista Andréa Mendonça Gusmão, PhD pela Fiocruz e professora da Ufba e UniFTC. “A resposta imune, por exemplo, é muito individual. Temos defesas naturais que variam de pessoa para pessoa. Até o estilo de vida ajuda. Não há uma resposta única. Não é um fator único. É um conjunto de fatores que podem contribuir com a maior ou menor predisposição para ter a covid-19”, completa.
Antes de pensar em tirar a máscara, não se vacinar e achar que nunca vai pegar covid-19 porque se enquadra no perfil dos “covirgens”, vá devagar. Resistência não significa imunidade. E ninguém garante que a primeira vez que pegar a doença será de forma assintomática. É aí que entra a imunização, um dos pilares para evitar fazer parte dos 28 milhões de casos registrados da covid-19 no Brasil. Ou pior: fazer parte do número de mortos. Os demais cuidados, já sabemos desde o início da pandemia: máscara, higiene e distanciamento social.
A rotina do cotonete que cutuca o cérebro
É impossível, para o fotógrafo Felipe Oliveira, saber quantos testes PCR para covid-19 ele fez ao longo desses quase dois anos de pandemia aqui no Brasil. Oliveira é responsável por registrar os melhores momentos do Esporte Clube Bahia, mas isso trouxe consequências. No retorno do futebol, ainda em 2020, o protocolo de segurança exigia testes do cotonete no nariz toda semana, muitas vezes até mais de uma vez no espaço de sete dias.
“A gente fazia teste direto, eu perdi as contas de quantas vezes fiz o teste do cotonete enfiando no nariz. É impossível se acostumar com aquela zorra, pois incomoda para caramba. Eu costumo brincar que quando abro o armário do banheiro os cotonetes já pulam em cima de mim. Pior que algumas pessoas usam o cotonete de forma suave, outras mais profundas. É uma agonia da zorra”, lembra Felipe.
O futebol, de fato, teve um show de testes no seu retorno. O volante do Vitória, Alan Santos, também não lembra mais quantas vezes que precisou enfiar o cotonete no nariz, mas conta como era sua rotina. No primeiro ano de futebol no país com a pandemia, todo atleta precisaria fazer um exame PCR 72 horas antes de cada jogo. Imagine que um clube joga, em média, duas vezes na semana. Não era fácil.
“Eram duas vezes na semana. Eu tenho sinusite, imagine como era para mim. Incomoda muito, mas precisava cumprir. Nossa atividade envolve várias pessoas aglomeradas, pois é uma atividade coletiva. Se um pega, passa para todos”, lembra Alan Santos. Com a vacina, os atletas não precisam mais fazer com frequência os testes com aqueles cotonetes que parecem tocar no cérebro. O que não deixa de ter um fundo de verdade.
Em outubro de 2020, uma mulher de 40 anos foi fazer um exame PCR nos Estados Unidos. O cotonete rompeu o revestimento da base de seu crânio, fazendo vazar o líquido cefalorraquidiano (LCR). Ela precisou de uma cirurgia de emergência. O caso foi publicado na revista científica JAMA Otolaryngol Head Neck Surgery. Na verdade, foi um conjunto de fatores. A mulher havia feito uma cirurgia na cabeça alguns anos antes e trouxe como consequência aberturas no crânio. E uma dessas aberturas estava justamente na parte nasal. Foi o único caso até hoje e os cientistas garantem a eficácia e segurança do teste. Mas que incomoda, incomoda.
Reportagem do Correio24horas