“Estou um pouco gripada, mas não se preocupe, não é covid”. “Minha rinite atacou hoje, mas é só alergia, te garanto. Eu conheço”. É possível que você tenha ouvido algumas dessas frases nas últimas semanas. De fato, adentramos oficialmente a época das síndromes respiratórias. Só que isso não é suficiente para descartar que seja covid-19.
Pelo contrário: em uma semana, entre o dia 3 e a última sexta-feira (10), os casos de covid-19 cresceram 111% no estado, seguindo uma tendência de aumento em todo o país. Os percentuais chegam a ser ainda maiores se comparar o início de maio com o início de junho – no dia 1º de maio, eram 354 casos ativos na Bahia contra 2.314 na tarde de sexta. Para especialistas, os indícios de que a quarta onda da pandemia chegou são cada vez mais fortes e que o momento é, novamente, de cautela.
Enquanto isso, a vacinação da terceira e da quarta doses patina e a ômicron avança. Se a variante BA.1 foi a maior responsável pelo surto de coronavírus no início deste ano, agora, duas novas derivadas podem estar contribuindo também com o novo aumento: as sublinhagens BA.4 e BA.5, que responderam por todas as amostras sequenciadas na última semana pela Fiocruz no estado. “Foram poucas amostras sequenciadas, mas foram BA.4 ou BA.5”, explica o biólogo Ricardo Khouri, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e pesquisador da Fiocruz responsável pela análise.
As duas cepas foram originalmente detectadas na África do Sul em janeiro e fevereiro, respectivamente, e têm mudanças significativas em relação à BA.1 (a primeira “versão” da ômicron e que provocou a onda de janeiro no Brasil). As novas cepas já são maioria na Europa, onde também fizeram crescer os casos.
Em Portugal, onde a BA.5 se tornou dominante, houve um crescimento de 58% das notificações de coronavírus e 33% das mortes, na segunda quinzena de maio. Segundo o European Centre for Disease Prevention and Control, agência de saúde da União Europeia, a BA.4 e a BA.5 têm mais chances de escapar das vacinas.
Mas a culpa não é só das variantes, como explica o infectologista Victor Castro Lima, professor de Medicina da UniFTC Salvador. “Esses aumentos são sempre multifatoriais”, diz, citando influências que vão desde o percentual de vacinados e a flexibilização de medidas até redução da imunidade de quem só tomou as duas primeiras doses, com o passar do tempo.
“Há também a própria dinâmica de circulação do vírus. As medidas restritivas hoje foram reduzidas devido ao movimento epidemiológico, mas o vírus pode voltar a circular”, explica.
Para o imunologista, pediatra e alergologista Celso Sant’Anna, professor da Ufba, já é possível mesmo chamar esse momento de quarta onda da pandemia no Brasil, especialmente devido aos números de grandes centros, como São Paulo. O governo paulista e a prefeitura de São Paulo voltaram até a recomendar o uso de máscaras em ambientes fechados, desde o dia 1º.
“Embora o número de óbitos esteja baixo em comparação ao que era, ainda é alto para o que a gente deseja. Três mil óbitos por mês (no Brasil) ainda equivale à quantidade de mortes por influenza de um ano”, compara Sant’Anna.
Variante
A avaliação da Secretaria da Saúde do Estado (Sesab) também é de sinal amarelo. Os índices de positividade no Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen) – ou seja, as amostras que chegam lá e dão positivo para covid-19 – vêm crescendo. No dia 25 de maio, só 0,3% dos exames que chegavam lá eram mesmo de Sars-cov-2. A partir do dia 30 de maio, as confirmações já ficavam acima dos 3%, chegando a 10,29% na última quarta-feira, dia 8 de junho.
“É um aumento pequeno, mas é um aumento. É menor do que em anos anteriores, mas a gente fica em alerta”, diz a diretora da Vigilância Epidemiológica do estado, Márcia São Pedro. Os índices de óbitos, por exemplo, não têm seguido essa tendência de alta ainda.
Os casos ativos também chegaram a um dos pontos mais baixos em maio, ficando na casa dos 300, no início do mês. Desde março, vinham caindo. Agora, ainda que continuem sendo bem menos do que no início do ano, quando eram 12 mil ativos no estado, eles voltaram a subir.
Com a ômicron, veio uma queda na proteção das vacinas contra a infecção, de acordo com a imunologista Viviane Boaventura, pesquisadora da Fiocruz/Rede Covida e professora da Ufba. Isso significa que se trata de uma variante com maior potencial de provocar quadros leves da doença nos vacinados.
Além disso, os cientistas suspeitam que a resposta imunológica produzida pelo corpo de quem teve a covid provocada pela ômicron não seria tão forte quanto com as outras cepas. Além de ser mais fraca, também seria uma proteção de menor duração.
“Dessa forma é importante que indivíduos não vacinados ou com esquema incompleto, incluindo aqueles que tenham sido infectados durante a ômicron, completem o esquema vacinal com a dose de reforço”, diz Viviane. A proteção contra doenças graves para quem tem o esquema vacinal completo, porém, continua alta.
‘Rinite’
Como acontecia na onda do início do ano, é comum que os infectados pela ômicron – em especial, os vacinados – tenham sintomas respiratórios, de forma predominante. Segundo o infectologista Victor Castro Lima, professor da Medicina UniFTC, essa cepa trouxe uma característica de afetar principalmente as vias aéreas superiores (nariz, faringe e laringe), e não o pulmão.
“Na ômicron, foram predominantes os casos leves parecidos com resfriados ou até amidalites, que são sintomas muitas vezes negligenciados pelas pessoas. Às vezes, pode ser covid. Se a pessoa não testar, não vai fazer o isolamento adequado e pode passar para outras que vão desenvolver um quadro grave”.
É por isso que qualquer sintoma gripal precisa ser encarado como uma suspeita de covid-19 ainda hoje. Por isso, a orientação se você tem um sintoma desses é testar, como reforça a diretora da Vigilância Epidemiológica do estado, Márcia São Pedro.
“Nesse momento, já era esperado ter essas outras viroses até porque existe uma sazonalidade. Tem a questão da temperatura porque aqui, quando esfria, todo mundo fica mais em casa, com as janelas fechadas. Vai haver, sim, um momento de mais vírus respiratórios, mas se eu não sei qual vírus é, preciso testar”, enfatiza.
Terceira e quarta
O problema é que a proteção contra a covid-19 hoje – em especial, contra a ômicron – depende muito da administração da terceira dose. O esquema primário, que era composto por duas doses da Coronavac, da Pfizer ou da AstraZeneca ou por uma dose da Janssen, tem a proteção reduzida com o passar dos meses.
De forma geral, o Brasil estacionou na cobertura da terceira dose. Na Bahia, apenas 47% do público-alvo recebeu a D3, o que se assemelha muito ao percentual do resto do país, que fica em 44,5%. Em Salvador, a situação é um pouco melhor, com 68% da população alvo tendo sido imunizada, mas ainda está longe do ideal.
“Nós flexibilizamos cedo a questão das máscaras e não intensificamos como deveríamos as campanhas para aumentar o contingente de pessoas com a terceira dose. Agora, a gente já está vendo uma campanha correta pela quarta dose, mas não podemos esquecer que tem gente que não tomou a terceira”, diz o imunologista e pediatra Celso Sant’Anna.
Ainda faltam dados para estimar quanto tempo dura a proteção da terceira dose contra doenças graves em pessoas abaixo de 60 anos. Mas os primeiros indícios são de que é uma resposta mais duradoura do que apenas a segunda dose. Até então, os estudos têm mostrado que a proteção só é mais curta para imunossuprimidos e idosos. “Ainda não sabemos como se comportará a longo prazo ou se surgirem novas variantes do vírus”, pondera a imunologista Viviane Boaventura.
É justamente por isso que a quarta dose ainda não é recomendada para a população em geral. No início deste mês, o Ministério da Saúde autorizou a aplicação em pessoas maiores de 50 anos, além dos profissionais de saúde e imunossuprimidos.
“Quem precisa da quarta dose são pacientes com câncer, com uso de quimioterapia, com terapia renal, pacientes que convivem com HIV ou que receberam um transplante de órgãos”, exemplifica o imunologista Celso Sant’Anna.
“Já os pacientes idosos é porque o sistema imunológico deles já não é capaz de responder com tanta eficácia quanto o paciente jovem. Eles têm imunossenescência, que é o envelhecimento do sistema imunológico”, completa o professor da Ufba, que considera correta a aplicação a partir dos 50 anos.
Em toda a cidade de Salvador, cerca de 132 mil pessoas já receberam a quarta dose – a população acima dos 12 anos é estimada em 2,2 milhões de pessoas. Na Bahia, 17% do público-alvo já tomou a D4.
“A quarta dose, na verdade, só deve ser discutida para a população em geral depois que os indivíduos tiverem a terceira dose. A gente ainda tem um atraso na busca pela terceira e isso, na realidade, acaba inviabilizando a discussão sobre a quarta aplicação em toda a população”, pondera a pneumologista Rosemeri Maurici, da Comissão de Infecções Respiratórias da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).
Crianças
Além disso, não dá para alcançar uma cobertura vacinal entre 90% e 95% de toda a população – considerada ideal pelos especialistas – sem a imunização das crianças. Hoje, a vacinação dos pequenos é um dos maiores desafios das secretarias de saúde. Na última sexta-feira, a ocupação dos leitos de UTI pediátrica no estado chegavam a 83%, enquanto a UTI adulto estava em 15%.
Somente 35% das crianças com idades entre 5 e 11 anos receberam as duas doses pediátricas da vacina contra a covid-19. Ao menos 64,5% tiveram a aplicação da D1. Já as menores de cinco anos ainda nem têm como ser vacinadas, uma vez que não há imunizantes aprovados para este público no Brasil. Em países como China e Chile, por exemplo, a Coronavac é usada para crianças com idades a partir de 3 anos.
“As crianças representam boa parte da população e são um veículo de transmissão da covid. Se uma criança pega covid na escola, pode levar para casa para um tio, um avô, um pai. Sem dúvida, esse é um ponto crítico que tem sido levado muito por desinformação de que a vacina teria efeitos colaterais, mas todos os estudos científicos sérios e robustos mostram que são seguras”, diz o infectologista Victor Castro Lima, da Medicina UniFTC.
Nas últimas semanas, escolas têm enfrentado surtos de covid-19 em todo o país. Algumas voltaram a recomendar o uso de máscaras, como reportagens do CORREIO mostraram. A pneumologista Rosemeri Maurici, SBPT, reforça que as crianças infectadas devem ser afastadas das outras.
“É importante que se vacine as crianças, que se faça campanhas de vacinação, esclarecimento aos pais sobre a necessidade de vacinar e, principalmente, manter as medidas de higiene respiratória, como máscara, distanciamento, lavagem frequente da mão e uso de álcool gel”, orienta.
Estratégias
Até que se decrete, de fato, o fim da pandemia, os países terão que combinar estratégias para enfrentar o vírus. Novos imunizantes, inclusive, continuam sendo desenvolvidos para tentar evitar que a proteção escape com eventuais novas mutações. Há estudos promissores como a vacina de spray nasal que está sendo produzida pelo InCor, em São Paulo.
“Esse é um vírus de mucosa, então começa no nariz. Alguns trabalhos mostram que uma vacina de spray nasal seria extremamente eficaz para abortar o vírus no início”, diz o imunologista e pediatra Celso Sant’Anna.
Ainda assim, ele defende um esforço global para aumentar a cobertura vacinal no continente africano. “Não adianta vacinar toda a Europa e ter a África com índices baixíssimos de vacinação. A gente vai continuar correndo atrás do prejuízo para fazer vacinas cada vez mais sofisticadas contra as novas variantes”, acrescenta.
Em alguns países africanos, o percentual de imunizados não chega a 10% da população: na República Democrática do Congo e em Camarões, por exemplo, os índices são de 2% e 5,6%, de acordo com o projeto Our World in Data, da Universidade de Oxford.
Sem índices estáveis de vacinação, assim como a falta de medidas preventivas adequadas, é difícil prever o fim da pandemia, como explica a pneumologista Rosemeri Maurici, da SBPT. “Quanto menos pessoas imunizadas e quanto maior a transmissibilidade, maior a probabilidade de termos novas variantes e o comportamento dessas outras variantes é imprevisível”, explica.
Conselho Estadual de Saúde recomenda que cidades voltem a promover mutirões
Diante da situação epidemiológica, o Conselho Estadual de Saúde da Bahia (CES) enviou ofícios esta semana às prefeituras dos 417 municípios solicitando que acelerem a vacinação contra a covid-19. O órgão, que fiscaliza e delibera sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), defende o retorno de medidas como drive-thrus e mutirões para aumentar a cobertura vacinal.
“Todos os municípios precisam retomar esse papel de incentivar a vacinação, mas principalmente os que estão organizando grandes eventos para o São João”, diz o presidente do CES, Marcos Sampaio.
Para ele, mesmo com a proximidade dos festejos juninos, é possível fazer uma grande campanha para tornar o ambiente mais seguro. Além disso, Sampaio reforça a orientação de que quem estiver com sintomas gripais, ainda que não seja covid, deve ficar em casa e usar máscara.
“Ninguém deseja viver cenários como os que a gente viveu no início da pandemia. Não tem motivo para isso, porque a gente agora tem vacina. A questão é colocar a vacina no braço das pessoas, orientar os pais para levar as crianças para se vacinar, fazer ações em escolas”, explica.
Se as pessoas não estão indo aos postos, o órgão defende que a ‘vacina’ vá até elas. Ou seja: retornando iniciativas como a vacinação em drive-thrus, shoppings ou mesmo ações como ‘forró da vacina’, os faltosos seriam mais facilmente compelidos a se vacinar. “É preciso que o poder público vá até as pessoas”, reforça Sampaio.
A Bahia tem, hoje, mais de 8,1 milhões de pessoas com mais de 12 anos de idade com ao menos uma dose em atraso. De acordo com a diretora da Vigilância Epidemiológica do estado, Márcia São Pedro, a Sesab tem feito reuniões com secretários municipais para reforçar a importância das campanhas.
“Estamos fazendo testagem nas escolas públicas, orientando os municípios a voltar a fazer drive-thru, aumentando a disponibilidade de postos de vacina, para a população não ter essa dificuldade”, pontua.
Fonte: Correio