Em um país constitucionalmente laico, o que leva dois candidatos a travarem uma verdadeira guerra santa para ver quem é mais cristão que o outro? Nesta primeira semana de disputa presidencial de segundo turno, os candidatos Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL), além de seus eleitores, transformaram a disputa cívica numa verdadeira mistura entre um filme de Hitchcock e uma comédia pastelão. Em pleno 2022, a guerra santa se tornou a pauta mais comentada nas redes sociais.
No primeiro dia após a votação do primeiro turno, vídeos viralizaram com intuito de “queimar o filme” dos candidatos que disputam o pleito. No lado de Lula, uma postagem associou o candidato a seitas satânicas. No lado oposto, um vídeo antigo deixou Bolsonaro precisando explicar sua visitinha à Maçonaria, uma sociedade mal vista entre evangélicos e católicos mais tradicionais.
Afinal, por que os dois candidatos precisam provar tanto seu lado cristão? É bem óbvio: o voto evangélico é uma cobiça para quem pretende vencer o pleito. E, para conquistar este grupo, é preciso seguir a cartilha cristã. Segundo uma pesquisa do Datafolha, 56% dos eleitores cristãos afirmaram que religião e política precisam se misturar. Tem mais: 60% acreditam que é mais importante valores familiares do que propostas econômicas.
“O Brasil é um país profundamente religioso e predominantemente evangélico. É conservador, sobretudo em pautas morais. Em 2018, por exemplo, a grande fake news foi a ‘mamadeira de piroca’. “As pessoas lidam com impressões sem fundamento e acaba sendo uma disputa de impressões sobre a realidade muito distante do que elas realmente são. Satanismo, mamadeira de piroca, kit gay, tudo isso faz parte de um mesmo pacote”, explica o doutor em sociologia e responsável pelo Laboratório de Humanidades Digitais da Ufba, Leonardo Nascimento.
Para Leonardo, estas pautas morais ofuscam os problemas reais. “É uma pauta da sociedade brasileira atual. Entrar nestas narrativas ficcionais é perigoso, pois descola o debate político da realidade: a fome, crise econômica e educação. Vivemos numa sociedade sem formação intelectual crítica. Se tornam discursos rasteiros e superficiais”, completa.
Como Lula se tornou um ‘satanista’ nas redes?
Tudo começou com um nome: Vicky Vanilla. O ocultista se considera “mestre e Líder da Igreja de Lúcifer do Novo Aeon”, fundado por ele mesmo. Vicky é satanista e, no final de semana das eleições de primeiro turno, Vanilla postou um vídeo no seu TikTok onde teria mostrado seu apoio a Lula e que o candidato, após alguns trabalhos ritualísticos realizados pelo próprio ocultista, seria eleito no primeiro turno, o que não rolou. Acontece que Vicky tem mais de um milhão de seguidores no TikTok e 102 mil no Instagram. Viralizou, mas de forma deturpada, alegando que o apoio, na verdade, seria um pacto entre Lula e o tinhoso. Grupos bolsonaristas espalharam o vídeo, tentando queimar o filme do candidato entre os cristãos, mais especificamente os evangélicos, um eleitorado que é motivo de cobiça entre os candidatos.
O vídeo repercutiu tanto que o próprio Vicky fez uma outra postagem alegando que o apoio veio dele, mas que não tem nenhuma relação com o petista. “Está sendo espalhado como uma fake news, tanto a meu respeito quanto a respeito do candidato Lula, que não tem qualquer ligação com a nossa casa espiritual”, alegou. Já era tarde. Outro vídeo do próprio satanista foi “desenterrado” por petistas, onde Vanilla critica Lula veementemente, o que acabou acarretando um teoria da conspiração, onde Vicky estaria fazendo tudo de propósito, como psicologia reversa, com o propósito de deixar a imagem do ex-presidente manchada frente aos cristãos. Um agente duplo. O satanista nega tudo nas suas redes.
Em nota no seu site oficial, Lula se diz cristão e condenou a relação com o satanismo.
“A verdade, como já repetimos antes, é que Lula é cristão, católico, crismado, casado e frequentador da igreja. Não existe relação entre Lula e o satanismo. Quem espalha isso é desonesto e abusa da boa-fé das pessoas”, escreveu.
A equipe de Lula pediu que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinasse a retirada do conteúdo em que o satanismo é associado ao candidato, o que foi acatado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino. “Não há vedação legal ou constitucional para o exercício da liberdade religiosa, seja qual for a crença, mas é inadmissível associar a imagem de candidato ao cargo de presidente da República a determinada religião ou ideologia sem o seu consentimento”, alegou o ministro.
A página de Vicky tem outras polêmicas. De maneira equivocada, o ocultista relaciona satanás a Exu, associando diretamente às religiões de matrizes africanas ao ritual satanista. O orixá Exu, uma entidade sagrada que abre caminhos, não tem nenhuma relação com a figura do demônio das igrejas cristãs. Muito pelo contrário. Na verdade, nem dá para comparar, pois Satã não existe para o satanismo raiz. Bugou? O satanista ortodoxo é um ateu convicto. Satã não é nada mais que o próprio homem, seus sentimentos e vontades. Basta lembrar o período mais esotérico de Raul Seixas, quando ele fez a música ‘A Lei’. Ele recita trechos como “Faz o que tu queres, há de ser tudo da lei”, ou “não existe Deus senão o homem”. Tudo isso está subentendido na Bíblia Satânica (R$ 57, na Amazon), publicada em 1969, por Anton LaVey.
Existem afirmações de que o livro sagrado do satanismo foi, na verdade, criado após o autor assistir o filme Bebê de Rosemary, filme exibido um ano antes. Porém, a influência vem da Roma Antiga, quando romanos, cansados das regras da Igreja Católica, fizeram uma sátira das missas cristãs, promovendo a chamada Missa Negra, um ritual pagão cheio de orgias, símbolos católicos invertidos e, dizem as lendas, com sacrifícios humanos. Até hoje nenhum historiador encontrou provas deste último relato. Também foi neste período que foi criado a figura do Baphomet, aquela cabra que se tornou símbolo do Satã.
No Brasil, o satanismo se tornou um ritual que mistura a figura de Satã com algumas entidades de matrizes africanas, como a Pomba Gira. É, inclusive, possível conseguir até um serviço de pacto com o tinhoso pela internet.
Procuramos alguns satanistas, incluindo Vicky, mas só conseguimos falar com um sacerdote de São Paulo. Ele ofereceu seus serviços por R$ 350, sem sacrifício de animais. Um pacto vegano. “Fazemos pacto há quase 10 anos com Lúcifer, sou Mestre da irmandade Justiça e Lealdade. Já temos mais de 300 pactuados, no Brasil e no exterior. Ter o pacto com Lúcifer é ter a oportunidade de mudar sua vida em todos os sentidos da palavra”, disse o satanista. Vamos preservar o nome dele. Na Bahia, não encontramos nenhum grupo declaradamente satanista. Na verdade, apenas uma pessoa, que tenta desde 2018 arrecadar R$ 500 mil no site Vakinha para construir um templo satânico em Salvador. Até hoje não recebeu nenhum centavo.
Por que a maçonaria queimou o filme do Jair?
Nem o autor Dan Brown, que adora um mistério envolvendo a Maçonaria, conseguiria entender o que o presidente Jair Bolsonaro estava fazendo num encontro maçom. Não que ele não pudesse, maçons pregam o bem, não o mal. O problema é que sua postura “terrivelmente evangélica” não permite, para os cristãos mais ferrenhos, ligações com essa sociedade discreta e cheia de segredos. É como ir ao McDonald’s e pedir saladinha. Por este motivo, um vídeo de 2017 desenterrado pela oposição tirou o atual presidente do sério e fez até líderes evangélicas se pronunciarem. Afinal, por que Maçonaria e cristianismo não se misturam, pelo menos na teoria?
Para cristãos mais radicais, Maçonaria é sinônimo de satanás, o que é difícil de entender o motivo. Existe um G no símbolo maçom, uma inicial de ‘God’, Deus em inglês. Na irmandade, inclusive, não aceita ateu, mas abraça qualquer religião, desde que exista um deus criador. Talvez por este motivo os evangélicos condenem a Maçonaria, o que fez o vídeo queimar o filme de Bolsonaro frente a um dos seus maiores eleitores. Repercutiu tão mal que líderes evangélicos, como Silas Malafaia, precisaram apaziguar a situação. “Nós temos a ideia de que nós [evangélicos] não podemos participar da maçonaria, mas isso não vale para outros”, resumiu, alegando que Bolsonaro não é evangélico. O atual presidente se diz católico.
O vídeo é verdadeiro, mas tem seu lado fake. Em uma das fotos com Bolsonaro na Maçonaria, diversos símbolos foram implantados na parede, como da entidade Baphomet, o famoso bode encontrado em seitas satânicas e difundido por grandes nomes do ocultismo, como Aleister Crowley, um filósofo que influenciou muitos nomes da música, como o baiano Raul Seixas (que não era satanista).
O Cristianismo sempre associou este “demônio” com a Maçonaria. Na verdade, com qualquer outro grupo que estivesse no seu caminho. Os templários, famosos cavaleiros cristãos, foram parar na fogueira, pois a Igreja Católica entendeu que eles tinham se afastado de Deus e estavam cultuando Baphomet. Na verdade, os templários ganharam muito dinheiro nas cruzadas e já não obedeciam muito a Igreja. Como os maçons.
“A Maçonaria prega a igualdade, fraternidade e liberdade, incluindo a religiosa. Imagina uma sociedade discreta e influente pregando a liberdade de crença naquele período em que a igreja tinha muito mais poder. O conflito com a igreja não é de agora, mas não entendo o motivo dos evangélicos herdarem isto, pois a maçonaria teve papel fundamental no protestantismo. Talvez por conta destas igrejas, como a Universal, que continuam achando que o maçom tem um pacto com o diabo. É surreal, pois todo maçom precisa acreditar no seu Deus. Não aceitamos ateus, pois acreditamos no Criador, mas sem dogmas, cada um com sua fé”, disse Eloan da Silva, de 75 anos, maçom há 47 anos e associado da Grande Loja Maçônica do Estado da Bahia (Gleb).
É até curiosa a negação bolsonarista aos maçons. Em setembro, Jair Bolsonaro fez questão de posar ao lado do coração de D. Pedro I, um maçom. Diversos apoiadores de sua escalada à presidência, como Michel Temer e o vice-presidente Mourão também são da irmandade. Aqui no Brasil, a Maçonaria tem um lado bem conservador, ao contrário de outros países. Em uma das visitas de Bolsonaro, em 2014, a maçonaria comemorava o golpe de 64.
“Bolsonaro não é maçom, isso eu consigo até garantir. A Maçonaria é, em tese, progressista, mas os membros são altamente conservadores, então há esse conflito. Desde a ditadura militar, há uma recomendação tácita para que não se discuta política dentro das lojas maçons. Isso minou o engajamento político presente no passado. A Maçonaria hoje vive de história. Muitos, inclusive, estão se divertindo com toda esta história, pois voltaram a falar da Maçonaria. Mas não temos nenhuma relação com o satanismo, viu”, disse outro maçom, de uma sede em São Paulo, que preferiu não se identificar.
O problema é que o vídeo da presença de Bolsonaro na Maçonaria não chegou só. Em uma entrevista antiga, Bolsonaro chegou a defender o aborto e admitiu ‘quase’ ter comido carne humana numa aldeia indígena. “Para parte dos eleitores de Bolsonaro, ele não é maçon e nem comeria carne humana. Ele é um representante divino. Existe uma construção ideológica para considerá-lo o representante da moral, dos bons costumes e do cristianismo. Talvez este movimento de trazer estes vídeos, tanto da maçonaria quanto da carne humana, provoque um questionamento de alguns bolsonaristas religiosos ou religiosos bolsonaristas”, explica Adailton Conceição, psicólogo e professor da Rede UniFTC. Como diria Dona Milu, de Tieta: “Mistéééério…”.
Reportagem especial do Correio