A retirada de garimpeiros ilegais da Terra Indígena (TI) Yanomami é uma ação prioritária para reverter a crise socioambiental gerada ao longo dos últimos anos, defendem especialistas e lideranças da região.
Os yanomami são considerados um povo de recente contato e a Terra Indígena (TI) Yanomami tem 30 anos de demarcação e homologação. São os yanomami quem protegem a maior reserva indígena do país.
Para quem começa a se inteirar agora das notícias sobre os yanomami, a situação que eclodiu parece novidade, mas os danos causados pela mineração prolongam-se no tempo.
Entre 1987 e 1990, uma centena de pistas clandestinas de garimpo foi aberta em torno dos principais afluentes do Rio Branco, o que permitiu que o número de garimpeiros, estimado entre 30 mil a 40 mil, chegasse a ser cinco vezes maior do que a população indígena. Atualmente, calcula-se que haja cerca de 20 mil garimpeiros na TI e 26 mil yanomami na parte brasileira e 11 mil, a parte venezuelana.
Nesta terça-feira (31), a deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR), que toma posse na presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) amanhã (2), afirmou que o país vive uma nova fase, em que o combate ao garimpo ilegal terá prioridade, entre as pautas do governo federal.
Assim como a parlamentar e lideranças yanomami, o sociólogo Bruno Gomes concorda que a retirada de garimpeiros deve ser um dos primeiros passos. Para ele, o Estado tem dois papéis a cumprir, no caso dos garimpos ilegais: o de sufocar as ações ilícitas e o de garantir que os povos originários possam viver conforme queiram.
“São 30 milhões de brasileiros e brasileiras que vivem nessa região [Amazônica] que precisam ter oportunidade de caminhos da geração de renda, para trabalho”, diz ele, que é também fundador da Agência Humana, entidade que coordena o Grupo de Trabalho de Mineração da iniciativa Concertação pela Amazônia.
“A gente vê que há um momento propício para, se o governo tiver vontade política, atacar de frente algumas questões de comando e controle, de combate à criminalidade e associar isso a projetos e ações, programas de médio e longo prazo, caminhos, oportunidades, possibilidades para que essas populações possam viver de acordo com seus modos de vida tradicional”, emenda.
Crise na saúde
O presidente da Urihi Associação Yanomami, Júnior Hekurari afirma que “há quatro anos, os yanomami estão lutando para sobreviver” e que, em 2020, observou um aumento significativo da malária e da desnutrição entre a população.
Segundo ele, as dificuldades de se acessar a TI Yanomami é algo que atravanca a contagem de casos e dificulta o monitoramento dos pacientes: “quatro anos e as comunidades sempre chorando”, lamenta.
Na ida de autoridades governamentais ao Polo Base Surucucu, em Roraima, no mês passado, Júnior Hekurari acompanhou tudo de perto. “Tinha muitos pacientes, crianças desnutridas. Foi muito grave, muito tenso. Crianças convulsionando de malária, desnutrição”, relata.
Os próprios profissionais de saúde estavam adoecendo. Na unidade, uma equipe formada apenas por três técnicos de enfermagem, um enfermeiro e um médico atendiam cerca de 150 crianças com desnutrição. “Ajudamos a equipe de saúde, que estava desgastada, com problema psicológico, porque estava trabalhando dia e noite inteiros. Impossível, isso”, sublinha, acrescentando que o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) da área deve passar, em breve, por uma reestruturação, prometida pelo governo Lula.
As mudanças já chegam à região. Na semana passada, por exemplo, uma equipe da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) visitou outro ponto da TI, na região de São Gabriel da Cachoeira (AM).
Segundo relatório da Hutukara Associação Yanomami, divulgado na semana passada, em 2018 foram registrados 9.908 casos de malária, e, no ano seguinte, início do governo Bolsonaro, a soma saltou para 18.187. Em 2020, a entidade contabilizou 19.828 casos e, em 2021, 21.883 casos.
A Hutukara tem participado e contribuído em articulações para documentar o que acontece com o povo yanomami. Em abril do ano passado, mês em que, tradicionalmente, o movimento indígena ganha visibilidade com eventos por todo o Brasil, divulgou o relatório Yanomami sob Ataque. O documento reúne testemunhos dos yanomami, que evidenciam como é viver em uma terra invadida e constantemente em disputa.
Um dos fatos que se tornaram um escândalo, pela gravidade da denúncia, foi o de que o governo Bolsonaro distribuiu cloroquina na região. O remédio foi apresentado pelo governo anterior como benéfico para tratar a covid-19, mas estudos científicos comprovam que o medicamento não tem eficácia. Somente em julho de 2020, o Exército levou 13,5 mil comprimidos a comunidades indígenas da Amazônia.
Falta de diálogo e desinformação
Júnior Hekurari comenta que, atualmente, cerca de 60 lideranças têm que dar conta das demandas das comunidades, que habitam o território de 9,6 milhões de hectares. Os problemas antigos misturam-se aos novos, como campanhas em redes sociais e fake news com contribuem apenas para desinformar a população sobre a real situação dos yanomami.
Um dos conteúdos de inverdades veiculado, inclusive por parlamentares, acusa organizações não governamentais de serem responsáveis pelo aumento de mortes evitáveis de crianças yanomami, durante o governo Bolsonaro. Um dos alvos é a associação Hutukara.
Falta na região até mesmo infraestrutura básica para comunicação. A comunidade de Surucucu recebeu ontem (31) a primeira antena de internet, por meio de uma ação feita com o fotógrafo Gabriel Chaim. O objetivo é melhorar a conexão e a comunicação com o DSEI.
Assim como no episódio da distribuição da cloroquina, a Funai – então, Fundação Nacional do Índio – isentou-se de culpa também em outros momentos, segundo Júnior Hekurari. O órgão que deveria fazer a defesa de seu povo manteve sempre um diálogo “difícil”, o que fez com que as lideranças locais buscassem ajuda de defensores dos direitos humanos, em Boa Vista.
“A Funai não fez seu papel, não defendeu os indígenas, não protegeu as terras indígenas. A Funai defendeu o governo Bolsonaro. A gente não via a presença da Funai, era difícil ter contato com a Funai, ela não respondia, proibia os parceiros de trabalhar e combater a desnutrição. Foi isso que aconteceu, violaram nossos direitos”, afirma.
Agressões e ameaças
Júnior Hekurari diz que é preciso garantir segurança aos yanomami e também aos profissionais de saúde, para que possam se proteger dos garimpeiros. Para ele, tanto os yanomami quanto servidores na região são submetidos a vários níveis de violência.
“Eu mesmo fui resgatar os corpos que foram assassinados. Crianças”, diz, remetendo ao caso de dois meninos que morreram, após serem dragados por balsas de garimpo.
“Nós, yanomami, convivemos com o medo. É assassinato, eles apontam pistolas, revólveres para as lideranças. A gente fica com medo. Várias pessoas ameaçam, mandam mensagens [de ameaça] dizendo que eu vou morrer. É muito risco.”
Júnior Hekurari atua como liderança na região desde 2008 e hoje faz parte de um programa de proteção de testemunhas. Ele conta que já encaminhou provas das intimidações à Polícia Federal, pois o medo não pode paralisá-lo. “Eu tenho que lutar para defender meu povo, porque ele precisa de mim. Crianças precisam de mim. Então, eu me arrisco”.
Muitos yanomami jovens são coagidos a fazer a segurança dos garimpeiros.
“Adolescentes de 14 anos. Ano passado, aconteceu uma coisa muito forte. Adolescentes de 13, 14 anos. Tinha quatro pessoas. Os garimpeiros ofereceram bebida alcoólica. Eles foram beber, todo mundo armado de pistola e se mataram. Foi muito difícil, mas a Polícia Federal não conseguiu investigar. Não tem apoio do governo federal, porque o acesso à Terra Yanomami é muito difícil.”
Há, ainda, casos de mulheres yanomami que têm filhos fruto de estupros cometidos por garimpeiros. “Tem muitos filhos. Já vi filhos dos garimpeiros e as mães criando. A gente vai cuidar, a criança não tem culpa. A mulher e a adolescente não têm culpa. São muito sofridas as comunidades”, pontua.
Júnior Hekurari diz que deposita “uma esperança muito grande” no governo que chega. “O Brasil é um país cheio de cultura, de diversidade, um país que não tem guerra, e o próprio presidente do país destruiu o seu povo”, finaliza, em alusão a Jair Bolsonaro.
Em abril do ano passado, quando o Ministério Público Federal (MPF) apresentou à Justiça Federal um pedido para obrigar a União a retomar ações de proteção e operações policiais contra o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, a Funai afirmou que atuava em atividades de monitoramento territorial por meio de cinco bases de Proteção Etnoambiental na região.
Na época, acrescentou que promovia ações permanentes de proteção, fiscalização e vigilância territorial. A Funai destacou também que a mineração ilegal era “um problema crônico, fruto de décadas de fracasso da política indigenista brasileira que, no passado, era guiada por interesses escusos, falta de transparência e forte presença de organizações não governamentais”.
Agência Brasil