O empresário Pedro Augusto Oliveira de Santana, natural do município de Valente no território do sisal da Bahia, responsável pela terceirizada Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA, falou pela primeira vez, após o resgate de mais de 200 trabalhadores que eram mantidos em regime de escravidão na Serra do Rio Grande do Sul. Ele chegou a ser preso, mas pagou fiança e foi solto. A reportagem é do g1/RS.
Ele diz que trabalhou apenas para as três vinícolas envolvidas e alguns produtores da região. “Trabalhei pra, como já está divulgado, a Vinícola Aurora, a Vinícola Garibaldi e a Vinícola Salton. Essas três, só ‘foi’ as únicas três que eu trabalhei até hoje. O restante, eu tinha alguns produtores que eu trabalhava, que eu fazia parte da colheita da uva”.
Pedro Augusto nega as acusações. Leia os principais trechos da entrevista abaixo.
Na entrevista, o empresário relata como construiu influência entre produtores da Serra até chegar ao momento atual, em que trazia centenas de trabalhadores da Bahia, onde nasceu, para transportar frango e, principalmente, colher uva para empresas da região como terceirizados.
“As vinícolas, elas tinham, como eu falei, dificuldade da mão de obra, até de contratar. Com toda essa dificuldade, elas acabaram me procurando. Onde eu comecei primeiro foi na Vinícola Garibaldi. Dali, o pessoal viu que eu estava fazendo um bom trabalho”, conta.
O empresário admite que já foi alvo de ações trabalhistas e de autuações por irregularidades, mas nega as acusações de trabalho análogo à escravidão. Afirma que pagava salários em dia, que oferecia comida e transporte adequados para os trabalhadores e que não tem notícia de violência contra os terceirizados. Pedro diz também que nunca teve PMs como seguranças, como apontado durante as investigações.
“É um momento delicado, é um momento difícil. Muitas acusações. Bandido, eu não sou. Quem me conhece de verdade [sabe]. Por onde eu passei, eu deixei uma história, uma história boa. Nunca deixei nada que deixasse uma imagem de bandido, que fiz algo errado”, garante.
Arma de choque, spray de pimenta e cassetete
Os empregados que trabalhavam em situação análoga à escravidão na colheita da uva em Bento Gonçalves, na Serra, narraram situações em que sofriam espancamentos, choques elétricos, tiros de bala de borracha e ataques com spray de pimenta. O empresário nega.
“Nunca, jamais. E eu ainda falo mais. Na maioria das vezes, eu levava os funcionários pra colheita. Eu, pessoalmente. Se perguntar pra qualquer funcionário, eles vão falar isso aí. Na maioria das vezes, eu ajudava a colher. E nenhum deles nunca me falou nada disso. Não fizeram nenhuma reivindicação pra eu não atender eles. Isso aí eu tenho certeza e eu tenho certeza que vai aparecer gente aí pra falar”.
Pedro diz que não frequentava a pousada onde os trabalhadores ficavam, e que esteve no local poucas vezes. “Eu não tenho nenhum acesso à pousada. O máximo que eu ia nessa pousada, se vocês observarem, podem olhar nas câmeras, é na frente pegar meus funcionários quando faltava carro, alguma coisa, pra ‘mim’ levar eles”.
Comida estragada, dívidas, espancamento
O empresário negou que os trabalhadores chegassem no RS com dívidas.
“É uma pergunta bem absurda. Eu considero uma pergunta bem absurda. Mas eu não vou deixar de responder, porque a gente que é honesto, a gente não tem medo de falar a verdade. Nunca houve dívida. Quando eles vieram, era livre, o valor, livre. Eles não gastaram nada. Outra coisa, eu nunca emprestei dinheiro pra ninguém na minha vida. Se eu fosse um cara que emprestasse, eu não faria outra coisa, ia trabalhar com isso. Nunca emprestei dinheiro na minha vida, pra ninguém. Se eles têm alguém que eles pegavam dinheiro emprestado, pode ter certeza que não tinha o meu aval”.
Conforme os auditores fiscais do trabalho que ouviram os homens, os relatórios “detalharam os sinais clássicos de trabalho escravo”, entre eles, o endividamento, que começou quando o grupo saiu da Bahia. A maioria viajou do estado nordestino para o RS com a promessa de pagamento de salários, alojamento e alimentação, realidade diferente da que encontraram.
Um dos trabalhadores contou que a viagem até Bento Gonçalves custou R$ 1,3 mil. Outro, que o empregador dava vales a quem quisesse adiantamento de salário e cobrava juros abusivos. Houve casos em que uma pessoa que se apresentava como policial ia aos finais de semana até o alojamento onde estavam residindo, que ficava no bairro Borgo, e oferecia empréstimos, com cobrança de juros, de R$ 100 até R$ 150.
“Nunca houve nenhum tipo de desconto de nada. Primeiro lugar, eles falaram que não receberam. Como é que eles já gastaram esse dinheiro antes se eles não receberam? Por aí, vocês veem que a pergunta, que os questionamentos não estão batendo”, disse Pedro.
Pousada onde ficava o alojamento
Sobre o alojamento, Pedro disse que a pousada contratada tinha condições para receber os trabalhadores. “Tem várias pousadas em Bento. Você conhece alguma, se eu trazer agora, se eu trouxer 10 baianos, alguém receberia? A gente foi lá olhar pra ver como estava a situação. Estava muito organizado. Inclusive, eu tenho as fotos aí do período que eles faziam. Tá tudo montadinho, até entreguei lá pro pessoal do jurídico todas as fotos no início e durante. Eles mandavam pra nós. Tinha um grupo que eles mandavam: ‘lavado toda a parte não sei o quê’. E mandavam pra gente pra gente ter conhecimento que tava tudo ok”.
Irregularidades anteriores
De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Santana tinha outra empresa, criada em 2012, chamada Oliveira & Santana, que foi autuada 10 vezes por irregularidades trabalhistas. Os alojamentos onde os trabalhadores ficavam também chegaram a ser interditados. Apesar disso, nenhuma situação análoga à escravidão foi flagrada. A empresa chegou a ter 206 funcionários e fechou em 2019.
“A gente assinou uma TAC [Termo de Ajustamento de Conduta], naquela época ali, relacionada mais a alojamento. Eu não consigo lembrar o ano, mas foi só uma vez. As outras vezes, a gente sempre foi auditado e colocada toda a parte. Tipo assim, o que eles pediam, a gente fazia”.
De acordo com o gerente regional do Ministério Regional do Trabalho, Vanius Corte, os trabalhadores eram coagidos a permanecer no local– que era pequeno e estava em más condições – sob a pena de pagamento de uma multa por quebra do contrato de trabalho.
“Alguns diziam que tinham recebido um adiantamento, mas nunca tiveram pagamento do que foi prometido”, conta o gerente regional do MTE.
O empresário nega. “Eu falo com maior certeza, nunca tive problema de pagamento em dia. O que já deu ali nas auditorias, em relação a assim, tipo, o contador fazer a parte do FGTS e ter uma diferença. Isso já teve, mas tirando as outras coisas, pode ter a maior certeza que não tem. Eu tenho certeza do que eu estou falando”, diz.
Convite para trabalhar no RS
O empresário contou como os trabalhadores chegaram até a serra gaúcha. Disse que, desta vez, veio mais gente de Salvador e da Região Metropolitana. Antes, era mais pessoal do interior, cidades pequenas vizinhas a Valente, cidade natal dele.
“Quando a pessoa finalizava a safra este ano, a maioria já deixava o nome pro próximo ano. Então assim, este ano, o que teve diferente, foi o pessoal que foi convidado de Salvador. Os próprios colegas. (…) A maioria era indicação dos próprios colegas, das próprias pessoas que já trabalharam. Tanto que, assim, tinha tanto mais gente que tinha pra vir, que queria vir, mas que não tinha vagas pra todos”.
Proposta: um valor limpo, alojamento e alimentação
Pedro explicou como era a proposta feita aos trabalhadores. Um dos homens contratados, relatou ao MTE que o grupo recebia comida azeda. “A maioria foi espancado, humilhado, várias coisas aconteceram aqui. Fui violentado no banheiro, me bateram. Cheguei lá e nós comíamos comida azeda. Nós trabalhávamos demais, trabalho escravo. Lá, eles estavam em posse de armas, ameaçando nós. Teve gente que tomou até tiro de bala de borracha”, conta um trabalhado após o resgate.
O empresário nega as acusações. “Eu tenho certeza que a comida tem condições de ser consumida. Tipo assim, eu não vou dizer que, por exemplo, teve um dia de um produtor que ligaram que a comida tinha estragado. Na mesma hora, nós ligamos pro rapaz do restaurante e no mesmo momento foi entregue a comida lá nesse produtor”.
“Era tudo terceirizado. A gente pagava tudo terceirizado. Então assim, o restaurante que fornecia comida pra eles é o maior restaurante de Bento Gonçalves. É a maior empresa que tem de alimento e fornece pra mais de 200 empresas de Bento Gonçalves, da serra gaúcha. Não é só de Bento, ele fornece para vários. É uma empresa muito grande. Como é que essa comida tá estragada, de um restaurante tão grande. Depois eu posso apresentar as notas de alimentação, são valores muito altos”.
Seguranças e policiais
A Corregedoria da Brigada Militar investiga a possível participação de policiais militares nas violências sofridas pelos trabalhadores. O repórter do jornal Zero Hora Humberto Trezzi teve acesso ao depoimento de trabalhadores resgatados. Em pelo menos um deles, que o g1 analisou, um homem relata ter sofrido ameaças ou algum tipo de violência por pessoas que se diziam policiais.
“Presenciou o Júlio Cesar, Jollo Vitor e Erick serem agredidos no alojamento pelo segurança, não sabe o nome, Kiko (gerente) e Escorsese (estava armado, o depoente diz que é policial)”, diz um dos trechos.
Pedro diz que não tinha seguranças e que nenhum policial trabalhava para ele. “Eu conheço o PM que o senhor está dizendo. Conheço esse rapaz. Porém, ele nunca trabalhou pra mim, nunca trabalhou pra mim. Nenhum policial nunca prestou serviço pra mim, nunca. Isso aí eu dou maior certeza”.
“Eu nunca tive um segurança. Eu ando por tudo, inclusive na Capital, na capital gaúcha. Eu sempre andei sozinho. Eu não tenho capanga, eu nunca tive. O Alan não é funcionário meu, conheço, sim. É funcionário do Fábio [Daros, dono da pousada]. É um auxiliar de serviços gerais, que ajudava na limpeza, ajudava no apoio, se vocês pegarem o buffet lá, ajudava a servir o buffet. Tudo isso tem gravação lá”.
Valor recebido por funcionário
O empresário explicou que recebia cerca de R$ 6,5 mil das vinícolas por trabalhador. O valor pago pelos produtores rurais era menor, cerca de R$ 300.
“Todos eles [tinham] carteira assinada. Sairia em torno de R$ 2 mil limpo, na mão deles. Dá R$ 2 mil líquido. O resto dos valores pagava despesa de ônibus pra vir, eu não sei se vocês têm noção de custo. A despesa pra vir, a despesa pra alimentação, a despesa de moradia, a despesa de EPIs. Então, são várias despesas. Aí, no finalzinho, fica lá uma coisinha bem pequena que, se tem alguém que estava muito louco pra pegar, eles vão ver depois que não é tudo isso que fala. O cara não ganha esse dinheiro pra tentar dar resultado, correr atrás de fazer um trabalho com eficiência, com qualidade. E não ganha esse dinheiro. R$ 6,5 mil, quando tu faz as contas, tu paga tudo, vai sobrar, sei lá, não sei se sobra R$ 100 por pessoa”.
Bens bloqueados
Na quarta-feira, a Justiça bloqueou os bens do empresário. O pedido de bloqueios de valores, imóveis e carros havia sido feito pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) foi aceito pela Justiça do Trabalho em Bento Gonçalves.
“Vamos provar o contrário [que não havia trabalho escravo]. Tenho certeza que vai desbloquear. Prejudica sim, com certeza prejudica porque quando tem tudo parado, tudo paralisado, tu não tem como movimentar. Com certeza, prejudica”.
Reportagem: Vitor Rosa, Humberto Trezzi, Vitória Leitzke e Gustavo Chagas, RBS TV, GZH, Pioneiro e g1 RS