Existem muitas lendas em torno do que se conta sobre a Trégua de Natal de 1914. Diante de uma história que se tornou comercialmente lucrativa, exagerar no enredo atende a muitos interesses. O que se sabe é que, há exatos 100 anos, os soldados pararam a Primeira Guerra Mundial em alguns trechos do Front Ocidental para confraternizar. Em “terra de ninguém”, britânicos e alemães cruzaram as trincheiras para trocar presentes, abraços e alimentos.
E também para bater uma bola. Hoje em dia, não importam tanto as proporções que episódio tomou. O futebol era um dos propulsores da paz entre inimigos. O sinal mais concreto de como ele poderia mudar a sociedade, e que se consagrou no imaginário popular. Pela primeira vez, o mundo pôde perceber de maneira clara essa força.
Quando a Primeira Guerra estourou, o futebol já tinha 50 anos de institucionalização e séculos de existência. Em um passado tão rico, obviamente, a modalidade havia mudado a realidade além das quatro linhas – o que conseguimos perceber mais facilmente no presente, graças à luz do passado.
Como em 1314, quando o Rei da Inglaterra proibiu a “disputa com bolas enormes” para não atrapalhar o seu contingente de guerra. Ou em 1883, quando um time formado por operários conquistou pela primeira vez a Copa da Inglaterra, simbolizando a popularização do jogo além da aristocracia.
A Trégua de 1914, porém, foi um momento ímpar até então. Porque nunca o futebol tinha deixado tão evidente que poderia interferir em um evento de proporções muito maiores e na própria sociedade. Ainda que fosse um elemento entre tantos outros naquela confraternização, ele ajudou a interromper a guerra mundial.
Em 1914, o Reino Unido centralizava o futebol mundial, expandido para além da Grã-Bretanha principalmente nas três décadas anteriores. O que envolvia a ilha tinha um significado muito maior para o esporte, já que foram os operários, marinheiros, engenheiros, estudantes, professores e outras classes britânicas que expandiram o futebol pelo mundo.
E a Primeira Guerra Mundial talvez seja mais simbólica para os súditos da Rainha do que a Segunda Guerra – a forma como a memória dos soldados é resgatada no Dia da Recordação enfatiza isso. Entre tantos simbolismos, por isso o bate-bola entre britânicos e alemães no front também se torna emblemático.
A preocupação do alto comando do exército, na época, é que a Trégua de Natal pudesse colocar em risco os interesses da guerra. Que os objetivos das nações fossem deixados de lado pelos soldados.
Entre abraços e presentes, a bola ajudou a mostrar que o inimigo também poderia ser semelhante, com os mesmos medos e ilusões. A guerra continuou por mais quatro anos depois daquele momento. Quem estava do outro lado da trincheira passou a ser ainda mais demonizado e o sangue escorreu de maneira intensamente. A carnificina deixou 10 milhões de mortos. Mas por pouco, nem que seja em utopia, o futebol poderia ter impedido tantas perdas.
E não foi pela Trégua de Natal que o futebol deixou de ser utilizado pelos combatentes. A partir de então, muito mais pelo próprio fortalecimento dos exércitos do que para a paz com o inimigo. Ele era incentivado pelas autoridades para desenvolver o físico, promover o trabalho em equipe, manter a disciplina e elevar o moral dos soldados.
Trivela/uol