Pelo menos cem tipos de medicamentos passaram da validade antes de chegar à população, gerando um prejuízo de mais de R$ 6 milhões. O CORREIO teve acesso a uma planilha da Central Farmacêutica do Estado da Bahia (Cefarba), órgão vinculado à Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) e constatou que foram perdidos remédios usados contra doenças como pneumonia, malária, diabetes, trombose, hepatites B e C, Alzheimer, Chagas, esclerose, osteoporose, câncer, esquizofrenia, hipertensão e Aids. Em nota, a Sesab informou que vai apurar a denúncia.
Só com testes rápidos do vírus HIV, por exemplo, foram perdidos quase R$ 1,215 milhão. Coordenador da Instituição Beneficente Conceição Macêdo, que atua na prevenção e apoio a pessoas com Aids, o padre Alfredo Dórea recebeu com surpresa a denúncia. “Enquanto sociedade civil, consideramos estarrecedor. Como organização, fazemos todo um esforço para enfrentar a pandemia do vírus. Não é oportuno perder nem um real público, quanto mais seis milhões. O teste é fundamental para dar início ao trabalho de prevenção e tratamento”, avalia.
O medicamento Temsirolimus, mais conhecido como Torizel, é um dos mais caros da lista. Utilizado para evitar a rejeição do órgão em transplantes renais, o remédio custa R$ 2.047 e foram gastos R$ 94.162,92 em 46 ampolas. Para o presidente da Associação de Renais Crônicos da Bahia, Gerson Barreto, a situação é “extremamente preocupante porque, às vezes, faltam medicamentos para outras finalidades e estão deixando um remédio caro como esse vencer”, disse.
Segundo ele, costumam faltar nos postos os medicamentos Noripurum, que serve para repor ferro no organismo dos portadores de problemas renais, e a Eritropoetina Humana Recombinante, para o tratamento de anemia de pessoas que fazem diálise. Desse último medicamento, 2.920 unidades serão descartadas por ter passado do prazo de validade. Um prejuízo de R$ 28 mil.
“Deve haver um estoque adequado em função do número de pacientes que os utilizam, com uma pequena sobra de reserva. Foi uma negligência de quem fez a licitação com um número grande de um imunossupressor que é usado por poucas pessoas”, avalia.
Mais desperdício
Também foram perdidos mais de R$ 127 mil com o medicamento Palivizumabe, uma vacina contra o vírus Sincicial Respiratório, que pode ser fatal quando acomete bebês prematuros. Quase o mesmo valor (R$ 124.527,84) foi desperdiçado com Bevacicumabe, mais conhecido com Avastin, usado em tratamentos de pessoas com câncer.
“Se isso realmente aconteceu, trata-se de uma situação de crime absurda. As pessoas que aguardam esses medicamentos não terão condições de adquiri-los por meios próprios. É como se elas estivessem privadas de uma melhor qualidade de vida ou até tivessem sua morte antecipada”, critica Romilza Medrado, presidente do Núcleo Assistencial para Pessoas com Câncer (Naspec).
Do total desperdiçado, mais de R$ 3,5 milhões eram referentes a medicamentos para o tratamento de hepatites: o Telaprevir e a Alfainterferona. Na opinião do hepatologista e professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Raymundo Paraná, a perda dos remédios sinaliza a falha de algum setor.
“Podem ter sido superdimensionados, ou teve falha na logística de distribuição. O Telaprevir tinha uma condição muito difícil de manipulação e pode ter faltado capacitação de pessoas para aplicar a medicação”, avalia.
Segundo ele, com o surgimento de novos medicamentos para o tratamento das hepatites em 2015, os dois remédios não têm sido mais prescritos. Paraná diz que, quando ainda era utilizado no tratamento, o Telaprevir chegou com bastante atraso e a sua distribuição sofreu vários problemas. “Muita gente que estava esperando para tratar não conseguiu”. Ele lamenta a perda dos remédios. “Vivemos em um país que tem sérias dificuldades em suprir sua população com medicamentos até para a atenção básica. Quando jogamos fora desse jeito não é bom para ninguém”.
Falta de controle
Para Sergio Roberto, gerente de projetos da MV, que atua com sistemas de gestão de saúde, os medicamentos venceram por uma falta de controle do lote e da validade. “A instituição que controla esses medicamentos tem a obrigação de fazer a validação constante. Com um sistema informatizado, ela tem condições de visualizar todos os produtos que estão para vencer e otimizar a rotatividade dos lotes. É um procedimento padrão nas farmácias e hospitais e não gera perdas”, afirma.
Segundo ele, o fato do medicamento ter sido adquirido para um paciente específico não significa que a instituição pode deixar de ter esse controle. “Enquanto o produto está sobre a guarda da instituição, ela é a responsável pela sua validade”. Para o especialista, uma perda com um volume tão alto indica que a instituição não fez o controle efetivo dos remédios, por uma falta ou falha de sistema, ou até por uma falha de gestão.
Secretaria vai apurar denúncia
O gestor da Superintendência de Assistência Farmacêutica da Sesab (Saftec), Gilmar Vasconcelos, disse que a Secretaria de Saúde do Estado estava verificando internamente se a denúncia era verdadeira e “estava apurando para saber como houve o vazamento da informação”. Ele é o responsável por garantir à população baiana o acesso qualificado a medicamentos essenciais em todos os níveis de atenção à saúde.
Sobre o motivo do desperdício e a possibilidade do órgão ter sido alertado pela Cefarba sobre a validade dos medicamentos, Vasconcelos informou que a secretaria só iria se pronunciar pela assessoria de imprensa.
Em nota, a Sesab, por meio da Saftec, afirmou que está apurando a denúncia de medicamentos que, “supostamente”, estão com prazo de validade vencido.
O órgão considera a denúncia grave e disse que abrirá inquérito administrativo para investigar o caso. “É importante informar que o estoque de medicamentos de compra centralizada oscila ao longo do ano em função de ações judiciais e que, apenas em 2015, totalizaram R$ 43 milhões”, pontua o documento.
Segundo a secretaria, a demanda por medicamentos pode variar com novos pacientes incluídos nos programas de dispensação de medicamentos e outros que saíram do programa, em virtude de nova indicação médica ou óbito.
“Esses medicamentos de elevado custo, adquiridos judicialmente e que, portanto, não estão no planejamento de compra regular e não constam no elenco pré-estabelecido pelo Ministério da Saúde, podem ser descartados ao término da sua validade em virtude da ausência de outro paciente com a mesma patologia para fazer uso”, pontua.
Ainda segundo a Sesab, ações corretivas para reduzir as perdas por transcurso da validade estão em curso, a exemplo da modernização dos sistemas de armazenamento e gerenciamento de estoque de medicamentos e materiais, bem como a determinação, desde 2015, de não receber medicamentos com prazos de validade inferiores a 12 meses.
Fonte: Correio