Foram os índios Tupiniquins que tiveram o primeiro contato com os portugueses que aqui chegaram em 1500. Segundo o relato de Pero Vaz de Caminha, “andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto… Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus… Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida”.
Exatamente assim deu-se início esta fabulosa nação miscigenada que depois se chamou Brasil: índios amigos que adoram folgar, dois degredados e dois grumetes desertores. Bem verdade que depois chegaram os franceses, mais portugueses, holandeses, escravos da África e outros povos na história mais recente. Séculos depois do achamento dessas terras, John Locke (1632-1704), para justificar a propriedade da terra em quantidade superior à capacidade de trabalho, escreveu que no início da história da humanidade, o mundo inteiro era como se fosse a América primitiva, ou seja, cada um detinha apenas o suficiente para sua sobrevivência: “Portanto, no princípio, o mundo inteiro era a América”. [1]
Os Tupiniquins habitavam a região do desembarque dos portugueses, mas o povo indígena que habitava boa parte da Bahia, inclusive o Recôncavo Baiano, eram os valentes Tupinambás. Povo guerreiro por excelência, mas dizimados pelos capitães, governadores gerais e caçadores portugueses. Apesar disso, foi povo indígena que teve maior contato com os primeiros colonizadores, pois habitava exatamente a região do Brasil em que se deu início o processo do povoamento oficial por Tomé de Souza, em 1549, quando fundou a cidade do Salvador.
Os primeiros relatos sobre os Tupinambás estão na obra de Hans Staden (1557), Jean de Léry (1578) e Gabriel Soares de Sousa (1587).
Segundo Hans Staden, no relato editado na Europa em 1557, os Tupinambás bebiam cauim[2] a noite toda e “dançam entre as fogueiras, soltam berros e sopram em seus instrumentos e fazem uma gritaria medonha quando estão embriagados. Mas é raro que briguem. São muito solidários entre si; o que um tiver a mais de comida que o outro, lhe dá”. Para que fiquem bem parecidos com as bebedeiras atuais, segundo Staden, os Tupinambás, “no próprio lugar onde bebem, também soltam suas águas”. [3]
De acordo com outro visitante ilustre dessas terras, poucos anos depois, Jean de Léry, (História de uma viagem feita à terra do Brasil, de 1578), “uma festa dessas poderia durar dois ou três dias, com música, dança, assobios e gritos o tempo todo. Às vezes os homens vomitavam para continuar bebendo. Deixar a festa seria considerado uma grande vergonha”.
Muitos anos depois, em 1587, quando os Tupinambás já tinham sofrido as influências e violências do colonizador, Gabriel Soares de Sousa, no Tratado Descritivo do Brasil, também relatou sobre as bebedeiras dos Tupinambás e acrescentou detalhes acerca de brigas entre eles e agressões às suas mulheres, o que não aconteceu nos relatos anteriores e também não condiz com o relato do mesmo autor com relação aos demais costumes dos Tupinambás. Segundo Gabriel Soares de Sousa, quando os Tupinambás tiravam para beber, “cantam e bailam toda uma noite às vésperas do vinho, e ao outro dia pela manhã começam a beber, bailar e cantar; e as moças solteiras da casa andam dando o vinho em uns meios cabaços, a que chamam cuia, aos que andam cantando, os quais não comem nada enquanto bebem, o que fazem de maneira que vem a cair de bêbados por esse chão; e o que faz mais desatinos nessas bebedices, esse é o mais estimados outros, nos quais se fazem sempre brigas, porque aqui se lembram dos seus ciúmes, e castigam por isso as mulheres, ao que acodem os amigos, e jogam as tiçoadas uns com os outros”. [4]
Sendo assim, “tomar todas”, urinar em qualquer lugar, fazer desatinos, dançar, gritar, tocar, cantar, vomitar para continuar bebendo, ficar com ciúmes, brigar, cair pelo chão, só sair quando a festa acabar…, não é o mesmo que se faz ainda hoje nos carnavais, pagodes, bailes funks e forrós deste país e de tantos outros países do mundo? Em lugar de cauim, bebe-se cerveja, whisky, cachaça, vodka, vinho e, mais do que isso, por infinitas razões, utiliza-se outras drogas atualmente consideradas ilícitas, mas que são usadas pelos homens muito antes de Cristo, da Igreja Católica e da moral e leis burguesas.
Pois bem, há alguns dias a opinião pública vem sendo bombardeada com notícias envolvendo acidentes de trânsito que resultam em mortes e causados por pessoas embriagadas na direção dos veículos. Jornalistas, articulistas e até apresentadores de telejornais e programas de péssima qualidade passaram a defender a existência de dolo em crimes dessa natureza e o aumento das penas para os crimes de trânsito. No calor deste debate, o Congresso Nacional, como sempre acontece, discute um projeto de lei que pune até quem transportar bebida alcóolica no interior do veículo. Nesta discussão, o fato de estar bêbado é demonizado e causador de todas as desgraças do mundo. De outro lado, talvez por ser bem mais complexo, não se discute o aspecto psicossocial da pessoa que se embriagou e, mesmo assim, resolve dirigir seu veículo e causa um acidente de trânsito.
Sem esta discussão precedente, penso eu, jamais evitaremos essas mortes no trânsito com mais leis e mais penas. Ora, se as pessoas nesse país bebem e se embriagam desde os Tupinambás e a agora indústria da bebida fomenta e lucra com este consumo, não será proibindo a bebida no interior de veículos e bares nas rodovias, fazendo blitzs com bafômetros, exacerbando penas e outras invenções mais que as pessoas deixarão de beber. O que interessa, portanto, é simplesmente evitar que pessoas embriagadas saiam por aí matando outras pessoas com seus veículos. Para tanto, como o bêbado não tem mais condições de absorver esta ideia, é fundamental que saiba disso enquanto está sóbrio.
Por fim, o professor Paulo Queiroz, ao discutir sobre a necessidade das leis, (Direito Penal, parte geral. Ed. Lumen Juris) nos instiga a perguntar sinceramente a si mesmo: “por que ainda não pratiquei estupro?”, “porque ainda não matei alguém?”, “por que ainda não assaltei um banco?”. A resposta, segundo o professor, com quem concordo plenamente, é pouco provável que seja: “por que há uma lei que o proíbe; e se a lei for revogada, eu o farei.”
Na verdade, cometemos crimes pelas mesmas razões que não os cometemos: o decisivo são sempre as motivações humanas, que mudam permanentemente, as quais podem ter inclusive, como a história (de ontem e de hoje) o demonstram fartamente, os mais nobres pretextos: a pátria, o amor, a honra, a lei, a justiça, Deus etc.
Sendo assim, conclui Paulo Queiroz, as leis se tornam meros instrumentos retóricos e demagógicos para criar uma impressão (falsa impressão), de segurança, criando no imaginário social a ilusão de que os problemas foram ou estão sendo resolvidos, até porque de nada valem se não existirem mecanismos reais de efetivação.
Enquanto isso, de nada adianta proibir, demonizar a bebida e inventar outras leis, pois os acidentes de trânsito só deixarão de acontecer quando compreendermos as motivações, (e aprendermos a trabalhar com elas), de quem se embriaga e sai por aí dirigindo e matando as pessoas. Relembrando Paulo Queiroz, pergunte agora sinceramente a você mesmo: por que ainda não me embriaguei e matei alguém em acidente de trânsito?
Gerivaldo Neiva * Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), em 21 de setembro de 2011.