R. é uma mulher negra, descabelada, meia idade, pobre, periférica, sem parentes próximos, desdentada (minto: tem dois dentes), cheira mal e, como causa ou consequência disso tudo, doente mental. R. é interditada e recebe um benefício do INSS, mas a vizinhança comenta que sua curadora fica com a maior parte do benefício, deixando R. quase sem nada. Comenta-se também no bairro que R. anda nua pelas ruas e é motivo de chacota e agressões por jovens mais doentes do que ela. Sei que R. é acompanhada por profissionais do CAPS (Centro de Apoio Psicossocial)[1], mas não conseguem oferecer vida melhor à R. por falta de melhor estrutura, de pessoal e de quem queira assumir a curatela com responsabilidade. Enfim, R. é um estorvo para todos.
Na verdade, R, é apenas mais um doente mental perambulando pelas ruas do Brasil. São milhares de “erres” sem família ou abandonados por suas famílias, sem proteção do Estado e sem o carinho da comunidade. Muitos deles, como a R. que conheço, recebe um benefício do INSS, mas este dinheirinho, muitas vezes, cai em mãos de pessoas inescrupulosas e os doentes mentais servem apenas como justificativa para que recebam o benefício do INSS. Não recebem o cuidado devido, mas também não podem morrer. É como se fossem a galinha dos ovos de ouro.
A ideia do CAPS é excelente, mas precisa de muito mais estrutura e pessoal qualificado para dar conta dos doentes mentais de uma cidade. O problema é que doente mental neste país sempre foi um estorvo e nunca se pensou neles como pessoa humana capaz de conviver socialmente e com qualidade de vida.
Voltando à R., no último final de semana encontrei-me com ela em um supermercado da cidade. Às vezes ela sabe quem sou eu, dependendo de seu estado mental do momento. Estava vestida e calçada e tinha uma ponta de cigarro de palha em um dos cantos da boca. Perguntei o que fazia no local e ela me respondeu, com rispidez e desconfiança, que estava com fome e queria comprar um café. Convidei R. para sair e tomar um lanche em uma padaria próxima. Saímos conversando sobre seu benefício, sob o olhar incrédulo de muitas pessoas. A entrada na padaria causou certo desconforto aos presentes e à jovem que atendia no balcão.
Mostrei à R. os lanches em exposição no balcão de vidro e ela preferiu uma “esfiha” enorme e bem dourada. Perguntei-lhe em seguida o que queria para beber e me respondeu que queria qualquer coisa. Lembrando-me de seu desejo no supermercado, pedi para R. um copo grande de café com leite. Voltei-me, por fim, para a jovem do balcão e fiz o pedido. Ainda atônita, nossa atendente voltou-se para R. e perguntou: A Senhora prefere a “esfiha” de carne ou frango?
Contive o sorriso e me mantive sério esperando a resposta de R. Agora, pelo menos por um instante, “R. Doida”, como lhe chamam no bairro, foi tratada por “Senhora”! Sei, no entanto, que aquele tratamento era mais dirigido a mim e por causa da minha presença do que para R. No instante seguinte, sem dúvida, alguém mais doente do que R. lhe faria uma chacota e lhe perturbaria ainda mais o juízo.
Antes que me esqueça, depois da consulta da jovem balconista, R. respondeu-lhe com um resmungo: “qualquer uma serve”!. Sugeri, então, que a “esfiha” fosse de carne e R. a devorou em poucos minutos. Na saída, perguntei a R. se ela estava me reconhecendo. Percebendo sua dificuldade, olhando me intrigada, apresentei-me como o Juiz de Direito que ela havia procurado no Fórum outro dia. R. abriu um largo sorriso de poucos dentes e apenas bateu a mão em meu ombro, exclamando com alegria: É mesmo!!
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil).