Uma mulher de 50 anos vai receber indenização de R$500 mil por ter sido mantida em condição de escrava por 44 anos em Porto Seguro, extremo sul da Bahia. Essa história começou igual à de muitas outras brasileiras que ainda na infância foram entregues para famílias abastadas para trabalhar como empregadas domésticas e permaneceram por décadas em situação análoga à de escravos. Dessa vez, no entanto, a sina de Maria, nome fictício usado para preservar a identidade e a segurança da vítima, teve um desfecho positivo. O acordo firmado com a família da patroa pelo Ministério Púbico do Trabalho (MPT) e pela advogada da vítima vai garantir uma chance de futuro para quem teve seu passado apagado.
Maria sequer tinha certidão de nascimento, que foi obtida pela patroa muitos anos depois e com informações de filiação inverídicas. Trabalhou até a morte dos patrões numa casa e numa fazendo no sul baiano. Como não há qualquer informação sobre sua origem e registros de que não falava português quando chegou para trabalhar com 6 anos, suspeita-se que tenha origem no continente africano. A vida dela, no entanto, começa quando após a morte da patroa, vai morar com um dos filhos da ex-empregadora, sofre maus-tratos e decide procurar ajuda. O amparo veio primeiro por uma amiga da vizinhança, depois por uma advogada que resolveu se envolver na situação e buscar órgãos públicos e depois pelo Centro de Referência em Assistência Social (Creas) e pelo MPT.
Hoje, Maria está empregada com carteira assinada e vivendo num imóvel alugado. Estuda à noite para finalmente se alfabetizar e vive seu primeiro relacionamento amoroso. Com o acordo firmado no mês passado e já homologado pela Justiça do Trabalho, ela vai receber indenização de R$500 mil, que deve ser quitada até fevereiro. O valor será obtido com a venda pelos dois herdeiros da empregadora de uma casa e uma fazenda. Até o prazo dado no acordo para a conclusão da venda, os dois filhos da ex-patroa estão mantendo o pagamento de um salário mínimo mensal.
Oportunidade – “Esse é um daqueles casos em que a gente vê tudo o que não poderia existir numa relação de trabalho. E apesar de entendermos que nenhum valor poderia pagar o que essa senhora passou, conseguimos fazer um acordo que permitirá a ela uma oportunidade de construir uma vida digna”, afirmou a procuradora do MPT Camilla Mello, autora da ação e que acompanha o caso até hoje, mesmo após sair da unidade do MPT de Eunápolis, onde a ação segue agora sob a responsabilidade do procurador Ricardo Freaza. Foi ele quem assinou o acordo junto com a advogada da vítima, Marta de Barros, que também moveu ação individual. O acordo quita tanto a ação individual quanto a ação civil pública do MPT.
O caso aconteceu no município de Porto Seguro, no extremo sul da Bahia. Aos 6 anos, Maria, chegou à casa de Heny Peluso Loureiro, falecida no ano passado, e seus filhos Joaquim Neri Neto e Maiza Loureiro Nery Santos, para trabalhar como doméstica. Não estudou, não fez amizades, nem teve relacionamento amoroso. Viveu para servir e nada recebia por isso, além de casa e comida. Após a morte da patroa, passou a viver com o filho de sua primeira empregadora. Ele tentou cadastrar Maria para receber benefícios sociais e a situação chamou a atenção da assistência social. A equipe do Creas decidiu visitar a casa de Maria para encaminhar o pedido de inclusão no CAD Único. A situação de Maria começava a ser revelada.
Rede de apoio – Foi nesse momento que conseguiu sair de casa, encontrar uma rede de apoio e uma advogada que a orientou e levou o caso para órgãos de proteção dos direitos humanos. O MPT abriu inquérito para apurar a situação. Depois da investigação e de tentativas frustradas de acordo extrajudicial, foi necessário ingressar com uma ação civil pública. Em paralelo, a advogada de Maria ingressou com um processo na Justiça do Trabalho cobrando o pagamento das verbas trabalhistas.
No fim do mês passado, MPT e os representantes do espólio da patroa e os dois filhos chegaram a um acordo, que teve a participação da vítima. No documento assinado por todos e já homologado pela Justiça do Trabalho, onde a ação corria, os empregadores não reconhecem culpa, mas se comprometem a pagar R$500 mil a título de indenização por danos morais e a regularizar a carteira de trabalho de Maria. O valor terá que ser quitado até fevereiro de 2025, prazo limite para a venda de dois imóveis que pertenciam à empregadora, sob pena de multa de 50% desse valor.
Número de casos vem crescendo na Bahia
Casos como o de Maria (nome fictício) têm se tornado cada vez mais frequentes nos últimos anos em todo o país e principalmente na Bahia. A possibilidade de obtenção de autorizações judiciais para fiscalizar as condições de trabalho em residências e uma maior atenção da sociedade para o tema têm levado ao aparecimento de muitas denúncias e à realização de operações de fiscalização e resgate de trabalhadores domésticos escravizados. Um indicador dessa realidade é que 20 empregadores baianos integram desde o primeiro semestre deste ano a Lista Suja, cadastro dos empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão mantido pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Os casos de trabalho escravo doméstico vêm sendo investigados, e as vítimas resgatadas. Em seguida, o Ministério Público do Trabalho conclui inquérito e tenta negociar o ajuste de conduta. Caso não haja acordo extrajudicial, o órgão leva o caso para a Justiça do Trabalho. Em abril, um casal foi condenado após manter, por cerca de 40 anos, uma empregada doméstica em situação análoga à escravidão. O MPT identificou diversas infrações às leis trabalhistas na residência, como ausência de carteira assinada, jornadas exaustivas, não pagamento de salários e férias.
A procuradora Manuella Gedeon, que coordena as ações de combate ao trabalho escravo na Bahia, destaca que, a partir de 2020 houve um aumento significativo no número de denúncias recebidas, o que possibilitou a fiscalização e apuração dos casos. “Há um problema antigo e uma cultura antiga no nosso país de casos de trabalho escravo. Nós resgatamos mulheres e homens que estão nessa condição há 30 ou 40 anos, em casas de família, trabalhando sem nenhum direito. Então, isso sempre existiu, mas agora a equipe está conseguindo chegar”, reitera.
Ação em rede – Trabalho escravo contemporâneo, ou trabalho análogo ao de escravo, pode ser definido como o cerceamento de liberdade do trabalhador, ou quando o trabalhador sofre com condições degradantes de trabalho, ou quando está em jornada exaustiva, ou está em situação de servidão por dívida. Pode, também, ser a soma disso tudo.
Na Bahia, o combate a essa prática é realizado sempre em rede, por meio da Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae-BA), com participação efetiva do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério do Trabalho e Emprego do Governo Federal, Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Governo do Estado e Polícia Rodoviária Federal, dentre outras instituições.
Dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) apontam que, durante o ano de 2023, ações fiscais de combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil resgataram 3.190 trabalhadores e trabalhadoras, o que possibilitou o pagamento de R$ 12.877.721,82 em verbas salariais e rescisórias às vítimas resgatadas pela fiscalização do trabalho.