Gerivaldo Neiva *
Depois de mais de 20 anos de magistratura, uma das maiores decepções que já sofri com o Direito foi o despejo dos moradores do bairro do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP). Não quero discutir aqui, embora entenda de fundamental importância para compreender minha decepção, acerca do que seja ou a quem serve o Direito, posto que temos um caso concreto e uma decisão judicial, baseada na lei, determinando o despejo de milhares de pessoas e destruição de suas casas. Sendo assim, estamos falando deste Direito posto e estabelecido com sendo uma ciência normativa e mantenedora da ordem social. Da mesma forma, estamos falando deste Direito ensinado nas faculdades e exercido pelos profissionais da área jurídica como sendo o conjunto das leis vigentes e que, de sua vez, tornam-se válidas pelo simples fato de serem leis.
Não estou propondo outro Direito ou novas leis, mas apenas defendendo que outra decisão, também legal e dentro da mesma ordem jurídica vigente, poderia ter sido adotada no caso Pinheirinho. Contudo, através de um ato do Poder Judiciário, o Direito posto serviu de fundamento para que fossem despejados milhares de moradores, pobres e desamparados pelo Estado, e destruídas suas casas.
Também por esses dias, sofri outra grande decepção com a ação do judiciário e dos governos da Bahia e do Rio de Janeiro com relação a greve de bombeiros e policiais militares. Lideranças tiveram as prisões decretadas pelo judiciário e os governos usaram de todos os meios, até de legalidade questionável, para desmantelarem o movimento e a organização dos policiais e bombeiros. Sob o argumento da manutenção da lei e da ordem, governos ditos democráticos agiram como nos tempos mais sombrios da ditadura militar. Tudo isto, no entanto, respaldado e referendado pelo poder judiciário e em nome da Lei e do Direito. Nem quero nem falar do triste papel da imprensa nestes episódios…
Agora, mesmo depois de oficialmente encerradas as paralizações, soldados que até ontem eram garantidores da mesma lei e da mesma ordem, continuam sendo caçados como se tivessem praticado os crimes mais hediondos. Ora, se tiveram decretos de prisão fundados na garantia da lei e da ordem, por que continuam subsistindo tais mandados com o fim do movimento?
Por fim, para completar minha tristeza, foi um grande golpe ouvir governantes (federal e estadual) declararem que não concederiam a anistia aos grevistas ou que não tomariam esta ou aquela atitude, como se fossem os donos da anistia, da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
Apesar de tudo, continuo sendo Juiz de Direito e não vou “pedir prá sair”como faziam os candidatos ao Bope no filme “Tropa de Elite” diante das adversidades. Quero continuar sendo Juiz de Direito para continuar afirmando que, por exemplo, com fundamento na mesma ordem constitucional utilizada em outras decisões judiciais, um Juiz poderia negar o pedido de despejo dos moradores do Pinheirinho e deixar de decretar a prisão de policiais militares e bombeiros por motivação política ou para atender o interesse do governador do Estado. Por fim, para continuar afirmando que anistia e outras garantias fundamentais previstas na nossa Constituição são conquistas históricas da humanidade, dos rebeldes e revolucionários, e não pertence à vontade do Juiz e nem do governante da vez, tenha sido ou não ele mesmo anistiado um dia.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia