Sábado passado, apesar do frio que fazia pela manhã, saí para dar uma caminhada e encontrei aquele amigo advogado, colega de turma, que preferiu continuar na advocacia do que seguir alguma carreira jurídica de Estado. Como sempre, depois dos cumprimentos iniciais, a conversa descambou para o trabalho, o judiciário, o Direito e notícias da semana:
– E aí, Gerivaldo, tudo bem?
– Tranquilo. E você? E a família, vai bem?
– Tudo em paz!
– Com vai a Comarca, muito trabalho?
– Como sempre, muito trabalho e a sensação de estar enxugando gelo. Lembro sempre de um amigo Promotor (Dr. José Vicente, Promotor de Justiça em Salvador, que dizia que nossa atividade é igual coceira de macaco: diminui, mas não acaba!).
– É verdade, amigo. Mas você sabe que nós advogados vivemos exatamente disso: quanto mais conflitos na sociedade, mais clientes no escritório e mais honorários em vista. O judiciário é para isso mesmo e vocês juízes precisam responder essa demanda.
– Você sabe que tenho minhas críticas a este modelo e não concordo que todos os conflitos da sociedade necessitem da intervenção do judiciário. Muitos deles poderiam ser mediados em espaços leigos e populares, desafogando o judiciário. Além disso, o judiciário não está preparado para tanta demanda e vai acabar implodindo…
– Verdade. Você sempre gostou de filosofar sobre o Direito…
– O problema maior, já disse isto várias vezes, é que estamos acomodados em pensar que o Direito, necessariamente, deve-se fundar na norma e que o judiciário, necessariamente, deve se fundar na decisão judicial. Em suma, precisamos pensar o Direito para além da norma e o judiciário para além da decisão judicial.
– Como assim, rapaz?
– Isto mesmo que você entendeu. Fomos todos levados, desde a faculdade até os manuais dos renomados mestres a pensar que o Direito se resume aos Códigos e Leis e que isto é o bastante para exercer a advocacia. Então, se você for a uma faculdade de Direito e pegar a grade curricular vai ver que as disciplinas propedêuticas (teoria geral, filosofia do Direito, hermenêutica etc) não têm importância alguma. Em consequência, para os estudantes, o Direito se resume às disciplinas profissionalizantes, ou seja, Direito Civil, Penal, Processos etc. O resultado é que saem da faculdade pensando que saber Direito é saber leis e que esta sabedoria se destina apenas a obter uma decisão favorável para seu cliente. Para concluir e lhe provocar ainda mais, alguns cursos de Direito por aí podem ser considerados como cursos de legislação.
– Tudo muito bonito, mas não consigo pensar em algo diferente…
– Realmente, é muito difícil pensar para além do normativismo. No último livro de Warat (A rua grita Dionísio), ele utiliza uma expressão que gosto muito. Na verdade, ele relata que teria sido criticado por um certo jurista no sentido de que ele, Warat, queria discutir o Direito “fora do prato que o contém” e que isto seria impossível. O velho Warat retruca dizendo que precisamos pensar em um Direito, criticando o normativismo, fundado na alteridade e na mediação dos conflitos, destinado a libertação e emancipação dos oprimidos.
– Isto é complicado demais, Gerivaldo. Nem estudantes e nem faculdades de Direito estão interessados nesse papo, pois o mercado exige advogados para o modelo de judiciário existente, ou seja, uma petição inicial bem feita, esperar por erros na contestação, explorar bem as preliminares ou problemas na instrução, presença de espírito em audiência e, finalmente, uma sentença favorável ao cliente. No caso contrário, recurso ao Tribunal e mais honorários…
– Sei disso e vejo isto todos os dias na relação com os advogados que atuam na comarca. O problema é que nem isso eles estão conseguindo fazer bem feito. O nível está muito ruim. Ninguém inova ou apresenta uma tese diferente. É tudo “copiar” e “colar”. Neste modelo, até ser juiz ficou chato e cansativo. Tudo muito rotineiro e resumido a preenchimento de formulários…
– Reclame, não, rapaz! Vocês juízes tem vida boa e bons vencimentos. Mudando de assunto, você viu aquela notícia no jornal de que um policial atirou e matou um malandro tentando furtar uma moto? Policial retado esse, né? Não contou conversa! O malandro se deu mal!
– Tá me provocando, né? Você sabe que não concordo com este tipo de ação…
– Vai me dizer que o policial agiu errado?
– Vou!
– Realmente, não entendo você.
– Olhe, você é advogado e sabe o quanto é importante ver respeitado em seus processos os princípios do contraditório, ampla defesa e do devido processo legal, né? Então, se é bom para o seu processo, deve ser bom também para todas as partes em qualquer processo judicial ou administrativo…
– Sim, mas são situações absolutamente diferentes…
– Estamos falando de respeito aos princípios conquistados, com muita luta, ao longo da história da humanidade… Além disso, em matéria penal você sabe que existem as circunstâncias que excluem a ilicitude, mas isto só pode ser apurado na instrução processual e, então, torna-se imprescindível o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.
– Não sei como você consegue misturar os impossíveis…
– Que é isso, rapaz! Você tem muitos anos de formado, mas não pode ter se esquecido da velha lição: “não há crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, em legítima defesa ou no estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.
– Claro que não esqueci, mas você deve admitir que um policial não sabe disso e seu papel é proteger o patrimônio das pessoas. Daí, meu caro, se for preciso atirar e matar, azar do bandido.
– Você é mesmo um provocador. É claro que um policial militar deve saber que ele não pode atirar e matar alguém que está tentando furtar uma moto. E se a conduta do bandido estivesse contemplada por uma das excludentes previstas no Código Penal? Ao atirar e matar, o policial não estaria ao mesmo tempo processando, julgando e executando uma pena de morte? Em outras palavras, não estaria o policial dispensando as faculdades de Direito, os advogados, Delegados, Promotores e Juízes? Perdemos os empregos! Fomos todos demitidos por um policial militar!!
– Gerivaldo, você sabe que eu tenho uma formação católica, defendo a vida como o bem maior, mas não dá para defender que alguém possa tirar o patrimônio de outro e um agente policial, vendo isso, não tome uma providência.
– É claro que ele deveria tomar uma providência, mas atirar e matar não pode ser a única providência ao seu alcance. Por que não acionou outros policiais e saiu em perseguição, por exemplo?
– Com a polícia que temos? Claro que não daria certo…
– Então, é a polícia que precisa se equipar e não permitir que um preposto seu tire a vida de outra pessoa dessa forma. Ah, eu sei que você tem formação católica e defende a vida. Por isso mesmo, sei que você é terminantemente contra o aborto, né?
– Claro!
– Mas se você é contra o aborto porque defende a vida, como você pode concordar que um policial militar tire a vida de uma pessoa?
– É diferente! Um feto é indefeso, mas um malandro sabe o que faz e pode se defender.
– Ok. Quer dizer que você é contra o aborto porque defende a vida, mas admite que um policial possa matar uma pessoa que está tentando furtar um bem material de outra pessoa? Em outras palavras, você defende a vida do feto, mas admite que “bandido bom é bandido morto”?
– Gerivaldo, a conversa foi boa, mas você me deixa com a cabeça fervendo e com minhas certezas abaladas. Até outro dia. Lembranças à família!
– Darei, sim. Bom dia e bom fim de semana. Um abraço!
– Tchau!
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)