Esta semana estava presidindo audiências no Fórum da Comarca (não gosto da expressão “fazendo audiências”), quando um servidor me procurou para informar que estava me procurando um “ex-presidiário” com sua família e que estavam todos aflitos e alegando urgência para falar comigo.
Quando me disseram o nome da pessoa, lembrei-me logo de quem se tratava. Uma história triste: órfão de mãe ainda criança, sem carinho do pai, pouco estudo, sem profissão, primeiros baseados de maconha, primeiros furtos, primeiras pedras de crack e a prisão por tráfico. Sempre o tratei considerando sua história. Conversei muito com ele por ocasião das audiências e também com sua irmã e esposa. Apliquei a pena mínima e em seguida converti em pena restritiva de direito.
Na verdade, sua história era a condenação maior que alguém pode sofrer. Condená-lo novamente e encaminhá-lo para um regime fechado era como subscrever a última linha para destruir definitivamente qualquer possibilidade de uma nova vida. Ora, se já não tinha oportunidades por não ter formação profissional e ser dependente químico, muito pior seria sua vida ao retornar do cumprimento de pena em regime fechado.
Seu caso não é o único e nem será o último por um bom tempo. Estamos (polícia, ministério público, judiciário, poder público e sociedade) formando uma geração de mutilados sociais, imprestáveis para o trabalho e para a convivência social. Queremos nos ver livres deles, mas enquanto a polícia mata um ou o judiciário encaminha vários para os presídios, o lamaçal social de onde germinam continua brotando novos filhotes a cada dia. Morre um, nascem vários. Prende-se um, outro toma seu lugar na cadeia da sobrevivência em meio ao horror da pobreza e exclusão.
Parece que estamos moucos, que não ouvimos o clamor das ruas e dos guetos. O brado é retumbante e fazemos de conta que ouvimos o silêncio. Há décadas fazemos mais do mesmo e só aumentamos os problemas que pensamos estar resolvendo. O Direito Penal e toda a repressão violenta da polícia estão sendo utilizados como gasolina em fogo. Além de não ouvirmos o brado das ruas, também não estamos vendo o mundo real à nossa volta. Parece que vivemos em outro mundo. Parece, de tanto enxugar gelo, que nossas mãos e razão também congelaram e perderam a sensibilidade. Não enxergamos mais pessoas em nossa frente, mas corpos imundos e impuros, lixo, excremento, meliantes, delinquentes, o mal do mundo.
Deixei que entrassem imediatamente. O rapaz tinha os olhos e semblante de quem estava há dias sob o efeito do crack. Apertou minha mão, sentou na minha frente e começou a falar, entre crises de choro convulsivo, sem parar e sem muita clareza. Consegui entender que não tinha conseguido se livrar da dependência, que vendeu tudo o que tinha em casa, que estava há três dias sem dormir, que tinha furtado um celular e vendido para comprar crack, que a polícia tinha invadido sua casa e estava à sua procura. Depois de tanto falar, mais calmo, levou o braço ao rosto e abaixou a cabeça sobre minha mesa, ficando ali por alguns minutos chorando baixinho. Em seguida, enxugando as lágrimas com as costas da mão, disse que tinha me procurado em busca de apoio e proteção.
Marquei o atendimento dele no CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) da cidade para a manhã seguinte e mandei que um Oficial de Justiça o levasse para casa e o apanhasse no outro dia para levá-lo ao CAPS. Agora bem mais calmo, o rapaz me agradeceu e saiu em companhia da irmã e da esposa. Soube, depois, que foi bem atendido e já tem consulta marcada com psicóloga e psiquiatra, além de medicado.
Retornei às minhas audiências sem a menor concentração e com aquela cena me perturbando. Apenas um detalhe me confortou por alguns minutos, apesar do grito retumbante que estou ouvindo das ruas e dos guetos, meu trabalho como Juiz de Direito, reconhecendo naquele rapaz uma pessoa humana, fez com que ele me procurasse, como Juiz de Direito, quando se sentiu ameaçado e sem esperanças, para garantir seu direito e lhe proteger. Por fim, tive a certeza de que naquela “audiência” inusitada está muito mais presente a Justiça, o Direito e o papel do Magistrado em uma sociedade, do que nas demais audiências (litígios que poderiam ter sido mediados em outras instâncias quando ainda eram conflitos) que continuei presidindo naquela tarde.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Porta-Voz no Brasil do LEAP (Law Enforcement Against Prohibition).