Era uma vez um lugar em que as pessoas comiam e bebiam de quase tudo. Uns gostavam mais de frutas e verduras e outros gostavam de carnes, aves ou peixes; uns adoravam suco de uva, outros de suco de melancia e outros de caldo de cana; uns preferiam as bebidas fermentadas ou destiladas, outros fumavam tabaco e outros cheiravam e fumavam outras coisas. Como era bom viver neste caldeirão de preferências…
Mesmo com esta saudável diversidade, embora alguns vivessem muitos anos com plena saúde, outros adoeciam, ficavam privados do pecado da gula e morriam ainda jovens. Aliás, morria-se de causas as mais diversas; gripe recolhida, velhice, morte morrida, morte natural, morte violenta, mal de amor… Enfim, os homens nasciam, viviam e morriam naturalmente e neste lugar prevalecia a máxima de que o mal era o que saía da boca do homem.
Por conta do inconformismo natural e em busca de respostas para todos os problemas que afligem os homens, os cientistas desse lugar, financiados pela indústria da pecuária bovina, descobriram que muitas dessas mortes estavam relacionadas ao consumo de carne de porco, que teria uma toxina perigosíssima e que levava as pessoas a sofrerem de enfermidades as mais variadas. Assim, apesar dos questionamentos e descontentamento dos criadores e da população consumidora de carne suína, terminou prevalecendo a tese da toxina suína e o consumo de carne de pouco sendo proibido.
Depois de intensos protestos dos criadores de porcos, outras pesquisas foram financiadas por eles mesmos e os cientistas, desta feita, conseguiram descobrir que a terrível toxina estava presente apenas em determinadas raças de porcos e concentrada em algumas partes do animal. Da mesma forma, descobriu-se que animais bem tratados, alimentados com ração balanceada e abatidos industrialmente não desenvolviam a toxina, mas mesmo assim algumas partes do porco deveriam ser evitadas. Por exemplo, as orelhas, os pés, mãos e rabos de porcos, segundo os resultados das pesquisas, concentravam altas taxas da toxina e o consumo abusivo poderia causar mal à saúde dos consumidores.
Em consequência desse novo estudo, as autoridades sanitárias, acalmando os criadores de suínos e os comerciantes, liberaram o consumo da carne suína e alguns de seus derivados. Então, através de Portaria da autoridade sanitária, passou a ser considerada lícita a criação de suínos na forma especificada e também lícito o consumo das seguintes partes do porco: pernil, lombo, bisteca, costelas, picanha e, apesar dos protestos dos naturalistas, os derivados produzidos e distribuídos exclusivamente pela indústria de alimentos, a saber: salame, linguiça, bacon e outros. No mesmo documento, paradoxalmente, determinou-se a ilegalidade da criação de porcos fora dos padrões estabelecidos e a comercialização e consumo, sob qualquer pretexto e de qualquer forma, das orelhas, mãos, pés e rabos de porco.
Com isso, apesar da satisfação dos criadores de suínos e de toda a indústria envolvida na alimentação, abate e distribuição, muitos ficaram insatisfeitos com a proibição do consumo de algumas partes dos suínos e esta proibição terminou alimentando uma grande rede clandestina de comercialização desses produtos. O povo reclamava de que era impossível dar sabor a uma feijoada sem essas partes do suíno, que não causavam mal à saúde mais do que as partes nobres e que essa tradição foi trazida pelos escravos africanos. No fim, a vigilância sanitária não deu conta de apreender as partes proibidas e traficadas, pois para cada suíno abatido resultava em duas orelhas, um rabo, duas mãos e dois pés que a indústria do abate descartava, mas a rede do tráfico sempre dava um jeito de conseguir colocar essas partes proibidas no mercado clandestino.
Daí, com a ineficácia da fiscalização sanitária, a polícia passou a ter poderes para fazer a apreensão dos produtos, prender os traficantes, invadir casas e praticar diversos atos de violência, entusiasticamente aplaudidos pela população, para garantir a proibição do tráfico das partes proibidas dos suínos. De outro lado, sempre para o bem da saúde pública, aprovou-se uma lei declarando que esses produtos, mesmo que fossem resultantes do abate legal de suínos, eram ilícitos e que se configurava crime, sujeito a pena de prisão, a comercialização e o consumo. Para finalizar, estabeleceu-se como represália até mesmo a internação compulsória dos que insistissem no consumo proibido.
Porém, mesmo com fiscalização intensa e amplas campanhas na mídia, o tráfico aumentava a cada dia e muitas pessoas terminavam experimentando apenas por curiosidade as partes proibidas. Alguns ficavam no primeiro experimento, mas outros continuavam o consumo e não entendiam a razão da proibição. De fato, muitos passavam a consumir com regularidade e não percebiam alteração na saúde, mas há notícias de que outros terminavam consumindo abusivamente e sofriam as consequências disso. Ao final, para saciar o mercado clandestino, passou-se até mesmo ao criatório clandestino de porcos, que também era violentamente destruído pelas forças repressivas.
O resultado desse comércio ilegal foi o surgimento de uma grande rede de captação, transporte e distribuição das partes proibidas. Com isso, algumas pessoas passaram a ganhar muito dinheiro e aprenderam a utilizar o sistema financeiro, que desconhece a palavra ética, para fazer a “lavagem” dessa grana obtida de forma ilícita, tornando-se pessoas poderosas e influentes. Alguns pequenos distribuidores também ganhavam algum dinheiro, mas sofriam investidas violentas das autoridades encarregadas da fiscalização e muitas vezes terminavam se comprometendo com o suborno e corrupção de autoridades para manutenção de seu pequeno negócio. Por fim, as pessoas encarregadas da entrega dos produtos proibidos, estas sim, passaram a ser alvo de toda a repressão e não raro eram presas ou mortas. A situação chegou a tal ponto que um terço da população carcerária era dessas pessoas e o sistema de justiça passou a funcionar quase que em função da captura, processamento e condenação desses traficantes.
Passado um tempo, alguns cientistas começaram a constatar que as doenças continuavam acometendo as pessoas, que muitos continuavam morrendo e que mesmo as partes liberadas dos suínos, em alguns casos, causavam mais mal à saúde da população do que o consumo das partes proibidas, onerando consideravelmente o sistema de saúde pública. Além disso, até mesmo pessoas do sistema repressivo, passaram a constatar que a máquina montada para reprimir o consumo das partes ilícitas ganhou uma dimensão imensa e passou a alimentar uma intrincada rede de corrupção, enriquecendo uns poucos e reprimindo violentamente os mais pobres. Assim, quando se deram conta, constataram que o encarceramento de jovens pobres entregadores das partes ilícitas aumentou consideravelmente e que também eram graves os danos causados exatamente pelo consumo abusivo e sem controle de qualidade. De fato, as partes proibidas, depois de descartadas pela indústria autorizada, eram processadas sem higiene alguma, conservadas com sal em excesso ou defumados com conservantes que causavam mais mal à saúde do que os próprios produtos.
Diante desse quadro, alguns passaram a defender que era preciso repensar a política da proibição, pois as partes permitidas continuavam causando mais mortes do que as partes proibidas, que a proibição estava apenas incitando a curiosidade para o consumo, que o combate à produção e consumo estava se transformando em um monstro violento e sem controle e, por fim, que os produtos proibidos poderiam ser vendidos legalmente com controle de qualidade e que assim causaria menos danos aos consumidores, quebraria a estrutura do tráfico e geraria mais impostos para o país, a serem investidos em saúde, educação, saneamento e habitação para os mais necessitados. Ao lado disso, melhor do que encarcerar jovens pobres, sem dúvidas, muito mais lógico e racional seria criar uma rede proteção social para cuidar e orientar os que já se encontravam em grau de dependência e realizar campanhas educativas para que outras pessoas não desenvolvessem o consumo abusivo de substâncias que podem causar dependência e mal à saúde. Afinal, desde que o mundo é mundo, os homens viajam em experiências com o corpo e a mente e não será nesta quadra da história da humanidade que iremos inaugurar um mundo sem as substâncias que proporcionam estas viagens.
Neste lugar fictício, que pode ser aqui mesmo, a duras penas, esta discussão está apenas começando e embora muitos continuem com as ideias formadas pela mídia e pelo preconceito, alguns já estão chegando à conclusão de que esta guerra, até então admitida como única via, foi absolutamente ineficaz e que tem causado mais danos e mortes do que o próprio consumo dos produtos proibidos. Por fim, apesar do fortíssimo lobby da indústria de produção das drogas lícitas, da força da máquina repressiva sem controle, da força do esquema do tráfico, da incompreensão do sistema de justiça e de todos os preconceitos, a legalização e regularização do consumo de todas as drogas surgem no horizonte, embora ainda distante, como um destino inevitável para nosso tempo.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Porta-Voz no Brasil do movimento Agentes da Lei Contra a Proibição (Leap-Basil)
Gerivaldo Neiva, membro da AJD e Leap-Brasil
www.gerivaldoneiva.com/
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