Defensor da causa dos profissionais do sexo e autor do artigo “Proteção Constitucional ao Trabalho da Prostituta”, o procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) Manoel Jorge e Silva Neto concedeu uma entrevista ao Trabalho Com Sexo e explicou sobre diversos assuntos relacionados à legislação e às condições de trabalho dos profissionais do sexo.
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor de Direito Constitucional de Mestrado e Doutorado da Universidade Federal da Bahia, professor visitante da Universidade da Flórida (EUA) e da Universidade François Rabelais (FRA), o procurador também é autor de diversas obras referentes ao Direito Constitucional.
Trabalho com Sexo: Qual a sua opinião sobre a regulamentação da prostituição?
MJ: Sou totalmente a favor da regulamentação. A prostituição não é crime e, não sendo crime, é uma atividade humana submetida a remuneração que, por consequência, deve sim receber a regulamentação. É necessário reconhecer que a regulamentação vai viabilizar a proteção dos profissionais do sexo, e não apenas deles, mas também de todas as pessoas que se utilizam dos serviços. É preciso compreender a prostituição como um trabalho e não como uma atividade proscrita, uma atividade proibida.
TS: Os deputados Fernando Gabeira (PV-RJ) e Eduardo Valverde(PT-RO) tiveram seus Projetos de Lei que visavam a regulamentação da prostituição arquivados. Em 2012 o deputado Jean Wyllys reassumiu a causa, mas até o dado momento nada aconteceu. Como o senhor avalia essa demora? (Acesse o PL)
MJ: Lamento profundamente. Isso revela que o Congresso Nacional brasileiro não está preparado para discutir as grandes questões que afetam a sociedade brasileira. Existe uma previsão regimental no Congresso que os projetos de lei não aprovados até o final da legislatura serão arquivados, o que significa dizer que até o dia 31 de dezembro de 2014, ou quando findar essa legislatura, já no inicio de 2015, esse será mais um projeto de lei que será arquivado.
TS: De acordo com o art. 3 do PL que visa regulamentar a prostituição, as casas onde são prestados os serviços serão regulamentadas. Como seria a fiscalização desses ambientes?
MJ: Diante da regulamentação, a fiscalização se daria de modo idêntico à fiscalização realizada pelos auditores fiscais do trabalho em outros tipos de estabelecimento. É verdade que haveria, na minha forma de entender, a necessidade de o Ministério do Trabalho e Emprego ditar uma norma regulamentar especifica, haja vista que os profissionais do sexo executam uma atividade bastante específica. Haveria necessidade de estabelecer normas relativas à medicina e segurança do trabalho, inerente a essas profissionais, por exemplo.
TS: O senhor acredita que a regulamentação da prostituição diminuirá os índices de exploração sexual?
MJ: Eu não tenho a menor dúvida. Inclusive, aqui no MPT, em 2009, presidi um inquérito civil público no qual houve a denúncia, feita pela Associação de Prostitutas da Bahia (APROSBA), de que prostitutas estavam sendo exploradas e mortas em hotéis do Baixo Maciel (Pelourinho). O MPT adotou expediente e providencias para ajustamento de conduta a fim de proteger o trabalho dessas pessoas. Se não resolveu definitivamente o problema, reduziu a possibilidade de novas ocorrências. Entre outras providências, tivemos a obrigatoriedade de disponibilizar preservativos nos quartos dos hotéis e todos os hóspedes se identificarem antes de entrar no estabelecimento.
TS: Em 2006, o Ministério do Trabalho e Emprego disponibilizou em seu site uma cartilha sobre a prostituição. Ela foi mal vista pela sociedade, julgando que visava incentivar a prostituição. Como senhor avalia?
MJ: É um guia de informação de atividade profissional como qualquer outro e ponto. O resto é preconceito e hipocrisia.
TS: As prostitutas são reconhecidas pelo Governo, foram inclusas na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) em 2012, e têm direito a aposentadoria. Isso foi um avanço apesar da falta de regulamentação?
MJ: É um pequenino avanço. Agora é buscar a regulamentação através de uma lei específica, porque prostituição não é crime, é trabalho. Então o avanço significativo que a sociedade brasileira precisa é aprovar o projeto de lei e se distanciar dessa histórica hipocrisia e da moral religiosa que nos impede de avançar e de reconhecer as prostitutas, que são também sujeitos, indivíduos destinatário de direitos e de obrigações.
TS: Na Classificação Brasileira de Ocupação, até o final do ano de 2013, apenas 1688 prostitutas foram cadastradas. Está faltando divulgação?
MJ: A falta de divulgação aliada ao preconceito e à hipocrisia. O fato é que esse número é pífio, ridículo e não expressa nem de longe o número de prostitutas que existem no Brasil.
TS: Em maio de 2013, em Campinas – SP, o filho de uma profissional do sexo recebeu uma indenização de R$ 100 mil reais após acidente de trabalho que provocou a morte da mãe. O que provou o vínculo empregatício foi a jornada de trabalho e a remuneração. De que forma a justiça analisa esse fatores se a prostituição não é regulamentada?
MJ: A inexistência de uma regulamentação não significa que ao trabalho humano não devam ser atribuídos os efeitos de um trabalho como qualquer outro. Nem todas as atividades humanas remuneradas são regulamentadas. Vou citar aqui inúmeras delas: carpinteiro, pedreiro, encanador, taxista não são regulamentados. Mas sobre todas essas categorias e indivíduos, há efeitos trabalhistas. Então não seria diferente com relação às prostitutas.
TS: Como diferir a prostituição da exploração sexual?
MJ: A liberdade de opção é decisiva. Se o indivíduo escolhe a prostituição, isso não é exploração sexual. Existe a tendência de achar que toda pessoa que ingressa na prostituição fez por absoluta impossibilidade de ter outra profissão, quando isso não é verdade. Então é preciso enfrentar o problema com os olhos postos nos fatos. Além da liberdade, existem outros requisitos para que se firme a ideia de que a prostituição decorreu de uma livre escolha. A exploração está relacionada ao cafetão ou proxeneta (donos das casas de prostituição e aliciadores das prostitutas que, por conseguirem clientes para elas, ficam com uma parte do seu dinheiro). Quando o PL estabelece que o proprietário não pode reter de mais da metade do valor pago à prostituta pelo cliente, é um bom caminho para impedir a exploração sexual. Muitas prostitutas são obrigadas a manter relações sexuais sem preservativos pelo proprietário do estabelecimento e isso é extremamente grave. Outras também são obrigadas a consumir bebida alcoólica dentro do estabelecimento a fim de elevar o lucro das casas. Isto está no depoimento de muitas prostitutas que eu tomei aqui no MPT. As convenções internacionais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), embora sigam firmes na linha da reprovação da exploração de qualquer trabalho, inclusive o trabalho sexual, não diz uma palavra sequer de censura sobre a hipótese de o individuo escolher deliberadamente a prostituição como atividade. É importante destacar também que o ingresso na atividade deve pressupor o limite mínimo de 18 anos, do contrário, é exploração sexual da criança e do adolescente (crime com pena de 4 a 10 anos de reclusão mais multa).
TS: O Brasil adota o sistema de Abolicionismo com relação a prostituição, onde, a ilegalidade está no empresário e não há nenhuma proibição em relação a alguém negociar sexo. Esse seria um retrato da marginalização da prostituição por parte do Congresso?
MJ: Esse é um retrato do momento em que nós estamos vivendo. O Brasil é um país religioso e conservador. Quando vejo as resistências ao projeto de regulamentação das prostitutas, observo que isso faz parte de um momento. Daqui a cem anos olharemos para esse momento histórico e veremos que, em 2014, no Brasil, estranhamente existiam pessoas que não admitiam a regulamentação do trabalho das prostitutas.
TS: Muitas mulheres não assumem que são prostitutas. Como se manteria a individualidade dessas mulheres após a regulamentação?
MJ: Eu não vejo problema nenhum entre a atividade ser submetida ao sigilo e à regulamentação. Se houver a necessidade da preservação da intimidade dessas pessoas e dos clientes, não há problema algum. Essa intimidade será preservada sem que isso cause efeito algum na regulamentação. Há, por exemplo, servidores públicos que trabalham na Abin que não podem divulgar que são agentes do serviço de inteligência do governo. Uma coisa é carteira de trabalho assinada como prostituta outra coisa é a atividade ser realizada entre quatro paredes.
TS: Quais são as formas de proteção desse trabalho? Existe alguma Legislação Brasileira que vise a proteção dos profissionais do sexo?
MJ: Até o momento, nenhuma. Mas, na minha forma de compreender, a Constituição Federal protege qualquer trabalho. E, se a prostituição é um trabalho, a Constituição Federal de 1988 obriga que a esse trabalho deva ser conferida a devida proteção.
TS: Existem profissões do sexo regulamentadas no Brasil?
MJ: Nenhuma. No exterior, sim. Na Holanda, os maridos das prostitutas as levam para o trabalho. Parece que a Espanha está em vias de aprovar um projeto de lei nesse sentido.
TS: Como são analisados os vínculos empregatícios de profissionais do sexo?
MJ: Do mesmo jeito que nós examinamos as demais profissões. Imagine o seguinte, se você trabalha no jornal Correio e está lá todos os dias, você tem um vínculo empregatício. Mas se, eventualmente, você for freelancer para outros jornais, não terá o vínculo de emprego. Você terá prestado um trabalho de natureza autônoma. É o mesmo raciocínio que deve empregado com relação às prostitutas.
TS: O senhor acredita que a prostituição seja regulamentada ainda neste ano de 2014?
MJ: Não. Este é um ano eleitoral, as sessões do Conselho Nacional serão reduzidas, se reunirão muito pouco no segundo semestre. Não creio que esse projeto será aprovado nessa legislatura. Talvez, com muita pressão da sociedade civil, seja aprovado na próxima legislatura.
TS: Existe preconceito tanto da esfera judicial para com esses trabalhadores?MJ: Membros do poder judiciário e membros do MPT são pessoas e, na condição de seres humanos, carregam todos os valores de suas vidas, não apenas como juízes ou como membros do MPT, mas como pessoas. Então, é inevitável que haja preconceito, resistência, mas inevitável também que possam ser dissipados.
Redação: CN*Informação: Correio