Ela gosta de leite com aveia no café da manhã, de ver novela e jogo de futebol na TV e, quando está com sede, estica a garrafa de plástico no meio das grades para a mãe ir buscar água na cozinha. Quando está brava, quebra o que vê pela frente e grita a ponto de a vizinhança escutar.
Ana tem 31 anos, mas se imagina no corpo de uma criança de 7, segundo familiares. Vítima de sequelas de uma meningite aos dois meses de vida, a jovem cresceu, mas seu cérebro não se desenvolveu, assim como sua fala, sua audição e seu poder de discernir a respeito de seu comportamento no convívio social.
Seu jeito agressivo e a falta de uma internação permanente, descartada pelos médicos, levaram seus pais a tomarem uma medida drástica e questionável aos olhos da lei. Há um ano e meio, a jovem viu seu quarto se transformar em uma prisão, uma suíte com direito a cela e cadeado.
Da meningite à ‘prisão’
As limitações de Ana foram determinadas por causa de uma meningite aos dois meses de vida que foi tratada, mas deixou marcas permanentes. Somente aos 2 anos, a família percebeu as primeiras sequelas cerebrais, na dificuldade constante da criança em ouvir.
“Eu vi que ela estava demorando a falar, aí a gente foi descobrindo que ela não escutava. Levei pra ver e confirmou. Ela virava de costas, a gente chamava, ela nem olhava”, conta a mãe, a doméstica Lázara Gonçalves, de 57 anos.
Os anos passaram e a aparente calmaria dos primeiros anos da infância até a adolescência, marcadas por idas a escolas especiais e ao contato com os outros, acabou com a chegada da fase adulta, quando as vontades biológicas, como o de conhecer alguém, se casar e ter filhos, confrontaram-se com sua condição.
“Após os 20 anos, ela começou a ficar mais agressiva, mais revoltada até, não sei se com ela mesmo, acho que ela percebe algo errado mas também não sabe. Ela quer muito ter filho, muito essas coisas, tanto é que após os 20, que ela começou a ficar mais revoltada, começou a dar muito trabalho em casa, querendo sair, batia nas coisas, avançava na gente e no fim ela conseguia sair”, afirma o irmão, o porteiro Maicon Gonçalves.
Antes da instalação da cela em seu quarto, a porta de madeira era suficiente, mas ficou frágil para os ataques de histeria. “Foi chumbada na parede a grade. Ela bate tanto que se fizer uma soldinha simples ela quebra”, diz o irmão.
O muro da casa era baixo demais. “A gente descuidou um pouquinho com a escada, pegou pra usar e não guardou, subiu a escada e pulou pro lado de lá”, afirma Lázara.
Contam seus pais que, quando conseguia escapar, tornava-se alvo fácil de estupradores, mais de uma vez. Assim mostram os inúmeros boletins de ocorrência por abuso de incapaz registrados até antes da alternativa ao cárcere. “Todo dia ela chegava falando que homem abusou dela, chegava machucada”, diz a mãe.
Nos melhores dias, os sumiços acabavam quando um policial a localizava e a identificava, conta a família. Nos piores, ela dava um jeito de voltar, geralmente com as roupas sujas por fezes e urina. “Do jeito que ela está ali se eu abrir ela vai mesmo pra rua, não tem quem segure”, afirma Lázara.
Internação permanente
Após as recorrentes ocorrências envolvendo a filha, tudo o que os pais conseguiram foi, há quatro anos, uma internação no Hospital Santa Tereza, em Ribeirão Preto (SP), por pouco mais de um mês.
A filha recebeu alta e desde então permanece em casa com tranquilizantes que, segundo a família, não ajudam. “Falaram que o que tinha que fazer já tinham feito. Que era pra ela tomar o remédio em casa”, afirma a mãe.
Os pais de Ana afirmam não gostar em nada da vida que proporcionam à filha. Sem esperanças de reabilitação, dizem ter consciência de que é errado mantê-la presa em casa, mas alegam não saber o que fazer. “A gente não se acostumou, é difícil, não tem o que fazer, é muito triste, é complicado, ainda mais do jeito que ela está ali”, afirma a mãe.
Defendem que a única saída é uma internação permanente em um hospital capacitado, mas não têm dinheiro para isso. Ao recorrerem ao poder público, afirmam que conseguiram somente a prescrição de uma nova medicação para Ana tomar antes de dormir.
“O melhor pra ela é uma internação num local em que ela possa morar, ela precisa de acompanhamento constante, de vigília constante”, afirma Maicon.
Há seis meses titular da Polícia Civil de Serrana, o delegado José Augusto Franzini confirmou ter ido à residência da família e, diante da situação da jovem, vai instaurar um inquérito por cárcere privado.
Por outro lado, avaliou a princípio que a decisão foi tomada “em desespero” pela família e vai apurar a responsabilidade das autoridades municipais de saúde no caso. Ele disse que também vai levantar o histórico de denúncias por estupro contra a mulher apresentadas pela família.
“O pai aparentemente está de boa fé. Ele está desesperado”, diz.
Prefeitura
A Prefeitura informou, em nota, que a paciente já tinha sido acompanhada pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e encaminhada para o Ambulatório de Saúde Mental da cidade, onde foi medicada antes de ser transferida para o HC de Ribeirão Preto, que a teria liberado posteriormente.
Diferente do que a Prefeitura informa, a família, alega que Ana chegou a permanecer apenas por uma semana no hospital antes de ser transferida para o Santa Tereza.
A administração municipal comunicou que, no último dia 1º de setembro, tomou conhecimento da atual situação da paciente por meio de uma denúncia anônima e procedeu da mesma forma que a anterior. “Imediatamente uma assistente social do CREAS esteve na residência da paciente para verificar a veracidade dos fatos”, informou.
O Ambulatório de Saúde Mental do município, segundo a Prefeitura, aguarda a decisão do médico sobre a possibilidade de notificar o HC da recaída da paciente. “Tudo o que é possível fazer, o município está se desdobrando para auxiliar no tratamento”, afirmou.
O Hospital das Clínicas, que não detalha o caso, informou que a determinação de uma vaga para a paciente cabe ao Estado.
“Em relação a referida paciente informamos que sua última passagem no HCRP foi há mais de 2 anos. Informações detalhadas sobre os atendimentos são protegidas por sigilo médico. A responsável pelas vagas de internação no HC é a Divisão Regional de Saúde (DRS)”, comunicou.
A Secretaria Estadual da Saúde informou que a paciente foi devidamente atendida pelo Hospital Santa Tereza até receber alta, em setembro de 2013, com a indicação para o acompanhamento ambulatorial na rede municipal de Serrana. “Depois disso, não houve nova solicitação de internação na unidade estadual”, comunicou.
De acordo com a pasta, a Política de Saúde Mental do SUS estabelece que o atendimento psicossocial está ligado à rede municipal, por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
*O nome da mulher foi modificado para preservar a sua identidade.
Fontes: G1 Ribeirão e Franca/EPTV