Para a dupla de amigos de longa data acostumada a se encontrar em hotéis de luxo e diante de arenas de shows com público de 100 mil pessoas, o cenário da vez era bem diferente — um apartamento de 60 metros quadrados dentro de um condomínio modesto de Guarulhos, em São Paulo. Um dos principais ídolos sertanejos do Brasil, Sérgio Reis foi ao local para visitar na semana passada Waldemar Ruy dos Santos, o Asa Branca. O maior locutor da história dos rodeios do país encontrava-se deitado, de pijama, com uma sonda na narina esquerda.
Há vinte dias, uma junta médica deu o diagnóstico desolador: o retorno de um tumor em pontos da garganta e na base na boca. Levando em conta o histórico de saúde do paciente, que é portador do vírus HIV e tem oito válvulas na cabeça em decorrência de uma criptococose contraída em 2013, os especialistas avaliaram que ele não aguentaria se submeter a sessões de quimioterapia nem muito menos a uma cirurgia. Passou então a ficar sob cuidados paliativos, quando não há mais esperança de cura e os tratamentos se destinam a minimizar as dores. “Vim aqui, meu amigo, me despedir de você”, disse Sérgio Reis ao colega.
Sedado com um coquetel de potentes analgésicos, que lhe são ministrados a cada quatro horas, Asa Branca, de 57 anos, enfrenta com coragem a situação e tem aproveitado o tempo para refletir sobre o passado. No auge de sua carreira, ele faturava mais de 300 000 reais por mês em cachês e namorava famosas como a modelo Alexia Dechamps e a atriz Isadora Ribeiro. Sua marca registrada era descer de helicóptero no meio das arenas lotadas. A queda veio no mesmo ritmo da ascensão alucinante. Esbanjou para valer com farras e drogas (“cheirava cocaína quase todo dia”) e ficou conhecido como o “Tim Maia dos rodeios”, depois de faltar a muitos compromissos. Se pudesse voltar atrás, conta que teria evitado o vício no pó (“a ‘muierada’ e as baladas eu faria tudo de novo”) e a gastança desenfreada de dinheiro.
O maior arrependimento, no entanto, está relacionado à sua participação em espetáculos em que os animais eram maltratados — por ele e pelos outros peões, com incentivo dos organizadores dos shows. Ao fazer vistas grossas a isso em troca da fama, acredita Asa Branca, um castigo divino caiu sobre ele na forma da sucessão de problemas de saúde. “Estou pagando toda a dor que causei e incentivei os outros a causar nos bichos dos rodeios”, diz, com a dicção bastante prejudicada pelos tumores, sem um pingo de vestígio da voz potente que lhe garantiu sucesso e fortuna nos anos 90.
Quando era aprendiz de peão, ele amarrava arame farpado em pneus para depois jogar no pescoço de cavalos. O sangue escorria pelas crinas enquanto os animais saltavam com dores. Após um tombo em que quebrou quatro costelas e perfurou o pulmão, mudou de ramo. Depois de uma temporada como imigrante ilegal no Texas, nos Estados Unidos, trouxe na mala um microfone sem fio. O negócio era uma novidade na época no Brasil, e Asa Branca utilizou-o para começar a narrar os espetáculos dentro da arena, em vez de ficar em cima de um púlpito, como faziam seus concorrentes. Assim, seguuuraaaaa, peão!, revolucionou o ofício e tornou-se o mais famoso profissional do gênero no país, justamente no momento em que esses eventos começaram a ganhar musculatura e a se espalhar pelo território brasileiro, junto com o estouro da boiada da primeira leva de astros sertanejos.
“Dos rodeios grandes aos pequenos, a festa era de alegria para o público, mas de dor e sofrimento para os bichos”, conta Asa Branca. Ele diz ter visto competidores usar um aparelho para emitir choques de 12 volts com o objetivo de fazer com que os bois saltassem de forma mais frenética, para garantir boas notas diante dos juízes. Havia também tropeiros que colocavam arames no sedém, a faixa de couro enrolada na região da virilha do animal, com o mesmo objetivo. “Eu via tudo isso na época, mas não me importava”, reconhece.
À medida que virou o principal animador desses shows, Asa Branca transformou-se também em celebridade e experimentou o que há de melhor e pior na fama. Fez pontas em novelas da Globo, como Mulheres de Areia, apresentou o especial sertanejo Amigos para a mesma emissora e era convidado dos programas de auditório de maior audiência.
O homem de 1,87 metro, cabelo batido e voz grave fazia tremendo sucesso com o público feminino. “Ele me pegava de helicóptero em São Paulo para irmos namorar nas cachoeiras de Minas e voltar logo em seguida”, lembra a modelo Núbia Oliveira. “Mas o Asa não prestava: me traía com todo mundo.” Durante alguns meses, ele morou com a apresentadora Marília Gabriela. Sua fama passou também a atrair políticos. Asa Branca levou Fernando Henrique Cardoso para fazer um comício na festa do peão de Barretos de 1994 sem avisar a direção do evento, que estava fechada com o rival político Orestes Quércia. “Mandei o Joãosinho Trinta fazer uma réplica da taça, narrei o gol do Romário na final do tetra e ajudei e eleger o FHC”, conta ele.
Os organizadores não gostaram da surpresa, e o locutor nunca mais brilhou em Barretos. Ele continuou pisando fundo nos excessos mesmo quando a queda já era iminente. Asa Branca jura que “só” cheirava fora do trabalho, mas seu comportamento nas arenas dava a entender o contrário. Muitas vezes, colocava uísque dentro de um cantil para bebericar entre as montarias. Emulando as loucuras dos astros de rock, deu para quebrar suítes de hotéis e, diante de qualquer motivo que o contrariasse, não pensava duas vezes antes de faltar aos compromissos, deixando milhares de pessoas à sua espera.
A multidão já não existe mais. Com o comportamento errante, ele perdeu contratos importantes. A escassez do dinheiro fez desaparecer os amigos de farra. “Eu bancava para todos uísque, cocaína e prostitutas.” Pai de cinco filhos com cinco mulheres (recentemente uma sexta mulher o procurou para dizer que também tem uma filha dele), vive hoje ao lado de Sandra Santos, com quem se casou em 2017. Pendurou o microfone dos rodeios no ano passado e sobrevive com uma minguada aposentadoria.
Para Luisa Mell, a mais conhecida ativista do país na proteção aos animais, o mea-culpa de Asa Branca sobre seu papel nas arenas transformou o locutor de vilão em herói da causa. “Acho louvável ter uma referência de dentro do rodeio que reconhece como essa indústria é cruel”, afirma. Os produtores dos shows negam os problemas. Em nota enviada a VEJA, a organização da festa de Barretos afirma que “o evento foi pioneiro na criação do Centro de Estudos do Comportamento Animal para desenvolvimento de normas sobre bem-estar animal e monitoramento de todos os procedimentos durante as provas”. O narrador diz que não ficaria em paz se não contasse o que viu nesse circuito. O devoto de Nossa Senhora Aparecida (ele tem a imagem dela tatuada no braço) pedia sempre a proteção da santa aos peões que iam enfrentar a arena. As orações agora são para que ela cuide dele, quando a medicina não tem mais remédios para seus males. Antes da partida de Sérgio Reis no encontro recente em Guarulhos, fez questão de tirar o pijama para fazer uma foto com o amigo vestido com o velho chapéu de caubói. Na despedida, ambos choraram.
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2019, edição nº 2655