Com 12 anos, a menina Antônia Marina Faleiros, trabalhava em um canavial no interior de Minas Gerais e nem sonhava quem um dia fosse se tornar juíza de Direito. Aos 21, a jovem Antônia, filha de um trabalhador rural e uma dona de casa, foi correr atrás de uma vida melhor em Belo Horizonte. Na cidade grande, a moça da roça chegou a dormir oito meses em um ponto de ônibus porque não tinha onde passar a noite, enfrentando o frio e o perigo da capital mineira.
Para conseguir aprovação em seu primeiro concurso, de oficial de justiça do Tribunal de Justiça de Minas, ela catava, no lixo, folhas borradas de um mimeógrafo onde eram feitas apostilas de um cursinho preparatório. “Gosto de contar essa história para reafirmar: a filha de uma dona de casa simples e de um trabalhador rural pode sim alcançar o que quer. Todos nós podemos”, se orgulha ela.
Hoje, aos 52 anos, casada, a juíza procura fazer a diferença por onde passa. Ela ajuda projetos sociais com crianças em Lauro de Freitas, Bahia, onde exerce o cargo de juíza da 1ª Vara Criminal da cidade. Dra Antônia também desenvolveu um projeto voltado para o resgate da cidadania dos carvoeiros e de seus familiares da cidade de Mucuri, na Bahia, ganhando prêmio no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “A minha história de superação serve para eu ter a certeza de que, com a minha profissão, eu tenho que dar espaço para quem não tem espaço”, pontua.
Filha mais velha de outros cinco irmãos, a mulher vencedora guarda uma triste lembrança no Estado do Espírito Santo. Um dos seus irmãos, Edésio, morreu em um trágico acidente em Água Doce do Norte, no ano de 1997: ele estava na carroceria de uma caminhonete quando o veículo capotou.
Leia a entrevista do portal Gazeta Online com a juíza:
Como foi a sua infância?
Sou a primeira filha de uma sequência de 5 irmãos que sobreviveram, já que alguns faleceram no parto. Vim do interior de Minas Gerais, há 52 anos. O que eu me lembro e gosto de repetir é que olhando os fatos para trás, no filtro do passado e da saudade, a história parece até bem bonita, mas na época, para ser sincera, não tinha graça nenhuma. Tivemos todos que trabalhar cedo, como uma imposição da necessidade, não por exploração dos pais. Eles não tinham como proporcionar boas condições e tínhamos que trabalhar, era uma realidade dos jovens da roça.
Por que você teve que trabalhar tão cedo?
Bem pequena,como filha mais velha, acabei assumindo a responsabilidade de cuidar dos irmãos mais novos porque meus pais tinham outras obrigações. Com mais idade, vendo as dificuldades do meu pai de colocar comida em casa, já que ele era um trabalhador braçal e ganhava muito pouco, e da minha mãe, costureira, tomei a consciência do trabalho. Antes desse trabalho mais duro, do canavial, já trabalhava lavando roupas para os outros. Juntava dinheiro para comprar caderno para os irmãos e para mim mesma. Com 12 anos, recebi esse convite para trabalhar no canavial, através de “gatos”, que são recrutadores de mão de obra para fazer esse trabalho na divisa entre Minas e São Paulo.
Desde pequena você já era uma pessoa esforçada, que gostava de estudar?
Sempre gostei de estudar. Fui alfabetizada pela minha mãe com 4, 5 anos e sempre fui adepta da leitura. Devo isso aos meus pais, especialmente minha mãe, que era uma pessoa que não tinha uma formação acadêmica apurada, que estudou até a quarta série primária, mas tinha muita curiosidade e vontade de adquirir conhecimento, além de ler muito. Era uma mãe muito exigente com o desempenho dos filhos. Ela sempre dizia uma frase que eu repito para os meus sobrinhos: quem tem a cama feita pode se contentar com o razoável. Quem não tem a cama feita, deve ser muito bom no que faz.
Por que você teve que dormir por oito meses em um ponto de ônibus?
Eu fui para a cidade grande procurar um emprego com 22 anos e nos primeiros dias tive que ficar na casa de parentes, fingindo que estava de passeio. Fiquei um período, mas chegou um momento que ficou insustentável, não dava para ficar de favor. Tive que me arrumar. Arrumei um emprego de empregada doméstica, mas a patroa não gostava que a funcionária dormisse na casa dela, porque ela achava que tirava a liberdade dos donos da casa. Para não ser obrigada a retornar para o interior, para a roça, e ter que abrir mão do meu sonho de fazer um curso superior e trilhar um caminho diferente daqueles que moravam na minha terra, eu mentia para minha mãe que dormia na casa da patroa e fingia para a patroa que dormia na casa de parentes. Mas na verdade eu não dormia na casa de ninguém porque eu não tinha onde morar. Eu passava a noite sentada fingindo que estava esperando ônibus. Como era um ponto muito movimentado, dava para enganar.
Você não tinha medo de dormir no ponto?
Era um lugar movimentado e havia uma outra particularidade: lá no prédio perto de onde dormia, funcionava o posto central da telefonia e, naquele tempo em que não havia celular, as pessoas usavam o posto para fazer as ligações interurbanas. Para me ajudar ainda mais, o preço era mais barato entre 23 horas e 5 da manhã. Ou seja, tinha sempre movimento, havia gente entrando e saindo do posto toda hora. Acontecia de eu notar que tinha alguém me olhando muito e aí eu entrava no posto como se eu fosse fazer uma ligação para disfarçar.
Aquela menina lá do interior imaginava que um dia poderia ser juíza?
Não tinha nem noção do que era um tribunal e muito menos da função de um oficial. Aos domingos, a gente comprava o jornal para ver os anúncios de emprego e em um deles havia o anúncio do concurso, patrocinado por um curso preparatório, com os cargos e as exigências. O de oficial me atraiu porque as matérias eram apenas três: português, matemática e noções de direito.
E essa história de estudar com folhas do lixo…
Português e matemática eram matérias tranquilas, que eu tinha um bom desempenho, dominava bem as disciplinas. Noções de direito eu não tinha nem ideia do que era. Aqueles vocábulos: legitimidade, competência, turma julgadora, desembargador – eu não tinha nem noção. Pensei: noções de direito posso aprender com as apostilas do cursinho e fui até lá para ver a possibilidade de comprar. Ao chegar, observei que o custo era muito acima da minha capacidade econômica, muito além. Enquanto conversava com a atendente, fiquei ali tentando imaginar o que eu poderia fazer para não desistir daquele cargo que seria minha salvação. Como oficial, eu ganharia dez vezes mais do que eu ganhava como doméstica, daria para fazer muita coisa boa na minha vida e na vida da minha família. Eu vi a secretária descartando algumas folhas, que ela passava no mimeógrafo e jogava fora. Peguei e percebi que dava para ler, apesar das folhas borradas. Aquele dia eu catei algumas e a partir daí, eu passei a ir rotineiramente na sede do cursinho. Hoje, relembrando essa história, eu desconfio que aquela secretária, cujo nome não sei e nunca mais a vi, percebeu que eu estava pegando aquelas folhas porque as folhas borradas passaram a ficar em uma lixeira seca, sem copinhos de café. E aí eu fui catando aquelas folhas e estudando, o que foi suficiente para eu fazer uma pontuação boa na tal noção de direito. Com isso, eu consegui, junto com as boas notas em matemática e português, o terceiro lugar no concurso.
Quando começou o interesse pela carreira jurídica?
A convivência com tantas pessoas da área jurídica – juízes, desembargadores, advogados, procuradores -, pessoas com as quais eu comecei a compreender o mundo do direito, acabou me despertando para uma carreira jurídica, que a princípio não era a minha opção de formação universitária. A carreira jurídica acabou surgindo em razão das circunstâncias. A decisão final veio na última hora, no momento da inscrição, quando um amigo desembargador me entusiasmou com argumentos sólidos, mas me lembrou também que a faculdade de direito ficava perto do Tribunal e tinha bandejão. Eu ficava com fome a noite porque não tinha como pagar lanche e o pensionato, onde passei a morar depois que assumi o cargo de oficial, não fornecia comida durante o período. Como aluna do curso, teria um bandejão para me alimentar, inclusive aos finais de semana. Em 1986, passei no vestibular e no ano seguinte comecei a estudar
E a sua família, como ficou com a notícia?
Tive a oportunidade de ouvir muitas vezes o orgulho dos meu pais de ver a filha formando. Sempre ajudava muito meus pais e irmãos. Meu pai chegou a verbalizar a alegria, principalmente porque havia aquele temor de que a menina fosse para a capital e se envolvesse com coisas erradas, voltando inclusive com um filho sem pai. E minha família era muito tradicional e simples do interior. Meu irmão Edésio, mais velho depois de mim, já falecido em um trágico acidente no Espírito Santo, sempre dizia que a minha história era um marco. Eu fui uma das poucas da minha geração que fez a faculdade naquele tempo. Eu rompi uma barreira.
Por ser de origem pobre, você já passou por alguma humilhação?
Muitas. Por volta de 8, 9 anos eu tinha os dentes muito estragados, muito cariados, e houve um projeto na Escola que sugeriu que eu arrancasse os dentes podres. Eu me recusava a extrair porque acreditava que um dia eu conseguiria tratar os dentes. Foram até conversar com os meus pais para me obrigar a tirá-los. Eles diziam que era uma ilusão da minha parte sonhar em tratar os dentes. Meu pai olhou para mim, me perguntou se eu queria arrancar e eu respondi: um dia vou tratar os meus dentes. Foi ali que me deixaram da forma que eu estava porque meu pai acreditou em mim. Lembro da humilhação que era diante da impossibilidade de apresentar peças, textos, inclusive textos que eu mesmo redigi na escola, porque eu não tinha a aparência adequada, não tinha os dentes bonitos. Mesmo ganhando prêmios com as minhas redações, não deixavam eu ler nas apresentações. Não fico me martirizando, reprisando esses eventos porque são eventos que ainda doem depois de tanto tempo. Dói de uma forma diferente, não é aquela dor de mágoa, é uma dor de tristeza de imaginar que uma criança ainda pode ser confrontada com esse tipo de comportamento. Quando me lembro dessas passagens da minha vida, faço isso para que sirva de lição para mim mesma: com a minha profissão, eu tenho sempre que dar espaço para quem não tem espaço.
Como que a juíza define a mulher Antônia?
A mulher Antônia Marina Faleiros é uma mulher abençoada, de uma família abençoada, e que teve sorte de encontrar pessoas de bem pelo caminho. Considerando a história de vida,tudo que eu passei, eu dei um salto que eu gosto de sempre reprisar para firmar que isso é possível: a filha de um trabalhador braçal semi-analfabeto e de uma dona de casa simples, que passou por todas essas histórias, que conheceu o creme dental com 11 anos, que teve que trabalhar cedo, pode estudar e chegar aonde quer. Todos nós podemos.
Qual mensagem você gostaria de deixar para todos aqueles que passam por dificuldades parecidas com a que enfrentou?
Conto brevemente a reação da minha mãe quando contei para ela que tinha passado em terceiro lugar no concurso de oficial de justiça. Ela me indagou: ‘a prova estava tão difícil assim?”. Ainda rebati e disse: ‘Mãe, pense bem, quantas pessoas ficaram para trás?’. E ela me disse assim: ‘você já viu corredor olhar para trás? Corredor olha para frente’. Então eu digo sempre isso: temos que olhar para frente e não para as dificuldades que passamos. É pensar no quem tem que ser alcançado, é ter disciplina e meta.
Fontes: Gazeta Online e Amor Direito