Quanto tempo demorou para a ficha de vocês cair? A minha caiu umas duas horas depois desses registros que eu e a fotógrafa Nara Gentil fizemos, no Cemitério Municipal de Brotas. Eu comia um bife à parmegiana que tirei do congelador. A garganta deu um nó e o estômago embrulhou. Mas eu sou um repórter. Repórteres querem ir até o fim em tudo.
Os olhos de André sobre a máscara é uma imagem que não sai da minha cabeça. Ele não tinha forças pra falar. Tentava responder às minhas perguntas e não conseguia. Os cunhados tomaram a frente para resolver as questões burocráticas. Um deles é funcionário da prefeitura e conseguiu assistência funerária.
O outro agradecia pelo bom tratamento no hospital de campanha do Subúrbio. Depois de confirmado o óbito, foi muito rápido. Tudo resolvido com trocas de mensagens com a funerária e o cemitério. Duas horinhas. Talvez três. E dois minutos para a despedida. Enterro express. Sem choro, nem vela. Em dois minutos não se mastiga nem um bife, quem dirá digerir o luto de uma vida.
Durante a despedida, André, atônito, segurava uma coroa de flores. Ficou calado o tempo inteiro, enquanto os cunhados soltaram algumas palavras de fé. “Aí é só o corpo. O espírito dela já ganhou o céu”. A coroa de flores quase fica do lado de fora. Foi empurrada com pressa antes da tampa da carneira ser fechada.
Edvaldo, o agente funerário que tem transportado uns oito corpos todos os dias, se mostrou sensível ao momento. “Meus sentimentos, pessoal”. Somente após a “cerimônia”, diante de nova provocação minha, André murmurou. “Muito triste”. O cunhado emendou. “Muito triste ter que ser assim”.
Qual repórter não quer cobrir uma guerra? Eu fui disposto a fazer o trabalho de sempre, mas meu erro foi não entender que as guerras cobram altos preços, inclusive emocionais. Duas horas depois, estava em posição fetal no sofá de casa, chorando, ouvindo Seis Minutos, composição do pernambucano Otto.
“Isso é pra morrer… Seis Minutos! Instantes acabam com a eternidade”, diz a canção. Acabam mesmo, mas antes fossem seis minutos. Dois minutos para se despedir de uma vida inteira é dose, viu! Depois dessa, eu só queria um dia feliz, um dia de sol, Otto. Quanto tempo vai levar para isso tudo acabar? Quem sabe em dois minutos esse longo inverno passe e lindos momentos floresçam no canto dessa sala escura.
Fonte: Correio